quinta-feira, 28 de abril de 2011

Notas sobre o meu existir N° 10

Não pense que é fácil relatar o ocorrido. Reluto em lembrá-lo, descrevê-lo é quase um masoquismo. Mas, a verdade tem lá seu encanto, ainda que no mais das vezes nos desencante com a crueza dos fatos escancarados em suas miudezas tão humanas.
Enfim, na terceira hora entrou o monsenhor em sua pose triunfante de quem tem a força do castigo nas mãos, seguido de um séquito de parasitas a concordarem submissos com todas as suas observações.  Estranhei carregarem todos os livros que mantinha no meu claustro. O texto manuscrito e ensangüentado encontrava-se nas mãos do padre vigilante, meu chicote imundo de tantas baratas mortas também estava, além de alguns cadernos de anotações.
Monsenhor, sem pedir licença a ninguém, começou a falar.
- O padre professor passa bem e lembra vagamente do que ocorreu. Sua única certeza é que este infeliz – apontando nitidamente para mim – levantou uma tese absurda de que se faz bem a um cristão ao matá-lo. Depois ele lembra que a turma estava dividida entre se concordava ou discordava dessa heresia. Logo após foi atingido e acordou diante do médico. Bom, meus caros seminaristas, quem concorda com o ponto de vista deste indivíduo, levante a mão!
Nenhuma mão se levantou, a não ser, é claro, a minha. O monsenhor olhou com rancor, ou até mesmo ódio, para mim e disse:
- O senhor tem alguma coisa a dizer?
- Gostaria de saber o que está acontecendo.
- Então você não sabe? O senhor provoca uma tragédia, que só não foi maior graças à intervenção divina, e não sabe o que está acontecendo?
- O senhor vai me desculpar, mas nada provoquei. E a graça divina, se existiu, foi pífia, poderia ter impedido o ocorrido, caso quisesse ou achasse necessário. Não fui quem atingiu o professor, nem nada ordenei nesse sentido, basta interrogar meus colegas. Apenas, defendia uma leitura heterodoxa das escrituras, fundamentada na Carta Acerca da Tolerância de Locke......
Ele gritou:
- Basta, chega de autores não católicos! Basta desta argumentação demoníaca! Olhem o que encontramos entre as coisas desse pecador insaciável: O Livro Negro do Satanismo, Malleus Maleficarum, naturalmente, na sua vulgata portuguesa “Manual da Caça às Bruxas”, pois até o momento é uma nulidade em latim, Corpus Hermeticum e Discurso de Iniciação de Hermes Trismegistos, O Livro dos Mortos do Antigo Egito, O Grande Alberto, História da Magia.....
Interrompi o monsenhor.
- Mas, senhor, esses livros são em decorrência dos estudos que estou elaborando em colaboração com o professor de História.....
- Cale-se!
Dirigiu-se ao professor de história e indagou:
- É verdade?
- Sim, ele está fazendo alguns apontamentos para mim, auxiliando-me nos meus textos didáticos.
- O senhor tem certeza que ele usa esse material apenas para suas pesquisas, não fará ele, secretamente, uso indevido desse material, cultivando um culto secreto ao escuro, ao demônio?
- Para ser honesto, não acredito. Ele simplesmente não acredita em nada, mas lê sobre tudo.
- Devo entender, então, que o senhor o está defendendo. Mas, está fazendo uma acusação ainda mais grave ao seminarista, pois não só não cultiva deus, mas nada, sendo, portanto, um ateu incurável, é isso que devo entender?
- Bom, se for para recriminá-lo, diria que ele nem ateu é. Para mim, ele nem se dá ao trabalho de querer destruir a crença dos outros. Ele é um indiferente com as questões religiosas e só as estudas para se divertir com aquilo que classifica da infinda ignorância humana. É fundamentalmente um cínico, epígono de Diógenes.
O monsenhor ficou meio perplexo. Parte de suas certezas foi por terra. Calado, olhava para os demais para saber que rumo dar as “investigações”, ou seja, estabelecer um culpado e uma pena. Um murmúrio corria a sala onde estávamos. Foi, então, que meu padre confessor se manifestou.
- Senhores, verdade que não avistaremos nenhuma das virtudes cristãs de forma típica nesse seminarista, mas acredito que não é capaz de provocar ou mesmo cometer vícios, com exceção, talvez, da leitura. Certamente, não mata, não rouba e não mente. Aliás, sua honestidade é o seu maior defeito. Creio que devemos começar a interrogar os alunos, separadamente, para tentar entender o que ocorreu. Mas, devemos interrogar o acusado em primeiro lugar, antes de tentar atribuir-lhe uma culpa que não lhe cabe e correndo o risco de nem descobrir o erro que cometeu.
E aqui sim começa a parte cruel, quando todos os seus colegas saem, e você só, diante de quinze ou mais inquisidores, tem que responder várias perguntas simultaneamente, todas ardilosamente feitas para te confundir. Arcaicamente acreditam que a verdade brota da dor e aplicam os suplícios nos infelizes que, por um motivo qualquer, muitas vezes banal, caem sob suspeita. Antecipo que resisti com todas as minhas forças, tanto quanto pude, ainda que, ao fim, sucumbi, como qualquer mortal diante da dor. Friso que a crueldade foi coletiva, pois cada um, trancafiado no seu claustro, sem escutar senão gritos dos supliciados, fica a imaginar o que o outro está contando, o que ele sabe sobre você e possa revelar para aliviar a dor própria, enquanto demoradamente espera a sua vez de ser interrogado. Muitos vomitam, mas a grande maioria, invariavelmente, se caga.

5 comentários:

  1. Estou tentando me recompor, nuvem furacônica...
    Consegui terminar de ler o seu texto depois de umas duas horas. Foi o mínimo de tempo que consegui.
    Começo a ler. Invade-me um mal estar e eu começo a chorar. Preciso parar de ler. Não consigo continuar. Levanto-me, começo a andar,sinto a boca seca, vou buscar água, pegar um lenço e foi quando me vi em frente a um espelho e nele refletida a minha dor de existir na condição humana.

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  2. Pelo menos, enquanto sentir dor é sinal evidente de que está viva........

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  3. O pensar com lógica. O enxergar com lógica, O sentir com lógica... Sempre foi visto ilogicamente... E as punições sempre foram pesadas.

    O homem sempre resolveu suas diferenças com a força bruta e física. Anos se passaram e sofisticaram-se as punições, mas continuam destruidoras, brutas e físicas.

    Pelo menos você continua vivo para poder continuar a sua história...

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  4. Descobri que tenho uma capacidade infinda de sobrevivência após essa passagem tenebrosa pelo mosteiro.....

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  5. Exatamente isso... parte do que você se tornou, deve-se à essas experiências.

    Somos a soma de tudo o que vivemos. Se gostamos de ser quem somos, devemos ser gratos aos fatos ruins e bons que vivemos?

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