terça-feira, 30 de agosto de 2011

Um plantador de árvores

Toda semana vou até uma repartição da prefeitura e carrego duas mudas de árvores que planto nas ruas do meu bairro. Desde que me mudei para a minha casa atual que venho fazendo isso. Não faço idéia de quantas árvores já plantei e de quantas poderei plantar. Só numa praça coloquei 20 árvores, e ainda que não façam por enquanto sombra, já aparecem nas vistas de todos. Alguns que me vêem fazendo isso, perguntam, por que o faço? Para no futuro caminhar na sombra, respondo de pronto. Eu e o meu cão Platão, parte importante do processo, responsável pela adubação constante de todas as árvores, com sua substanciosa merda. Aliás, dele e de outros cachorros mais, pois que poucos donos se dignam a limpar a bosta dos seus cães, e fico recolhendo e espalhando esses restos. Retiro o mato que cresce perto das mudas e deixo de cobertura vegetal, encobrindo a merda depositada. E assim vou passando os dias, passeando pelas ruas do bairro e cuidando de suas árvores, e da retirada de bosta das calçadas, conhecendo e conversando com as pessoas. Algumas árvores já dão sombra, outras flor, outras ainda frutas. No boteco da esquina sou conhecido como o guardador de árvores, ou ainda coletor de bosta, aquele que caminha com o seu cão e cuida das plantas, de qualquer modo, um excêntrico, um caso folclórico na região, por vezes apontado na rua pelos transeuntes. Pessoas que moram na frente onde planto as árvores agradecem, por vezes, pensam até que sou da prefeitura, mas quase todos acabam molhando as mudas, conversando comigo e tomando amor pelo vegetal. E ainda que haja aqueles que não querem árvores na frente de suas casas, pelo trabalho que as folhas causam, a grande maioria aprecia uma boa sombra na sua entrada e recolhem resignados as folhas.
Andando pelo bairro fui conhecendo a vizinhança e me tornando conhecido de muitos. Para a grande maioria sou um pobre que não trabalha, um plantador de árvores que caminha quase todos os dias, que carrega livros que lê no banco da praça apreciando o fim da tarde, quando o tempo assim o permite, enquanto seu obediente Platão brinca ou dorme na praça; uma pessoa que tem muita cultura inútil, mas nenhuma profissão. Que entende de árvores e de plantas, de história, de arte, de política, de economia, dos sentimentos humanos, de filosofia, de livros e de tudo que é porcaria que não põe comida na mesa. E que tenho muito tempo para perder para ficar plantando e cuidando de tantas árvores. Até os bandidos da região sabem que pouco tenho, nada roubável, coisas usadas, e que dinheiro nas minhas mãos é raro, e é coisa que logo gasto no açougue, na padaria ou na mercearia. Um estranho, mas inofensivo; meio alucinado e anormal, porém que cuida da sujeira das calçadas e das árvores da rua. Os idosos em particular e alguns jovens gostam de ficar conversando comigo, apreciando meu despojamento com a vida e o meu prazer com as plantas. Quando perguntam meus planos para o futuro, visto que tenho pouco mais de trinta anos e algum tempo de vida pela frente, respondo que continuar a fazer o que faço. E viagens, e fortuna, e bens e posses? E família? E emprego? E uma casa melhor e uma vida mais farta? Nada disso, e mais, só viajo para acompanhar alguém, quando convidado: a ignorância humana é a mesma em toda parte, guardadas as peculiaridades locais. Família e trabalho são sinônimos, e desagradáveis; riqueza, uma escravidão. No mais, tenho muitos livros para ler, muitas coisas em que pensar e muita vida para cuidar, não só para mim, mas principalmente para aqueles que virão depois de mim, que, espero, caminharão por ruas arborizadas e sombreadas, onde sentados na praça poderão degustar alguns escritos ou ler o jornal, como também espero fazer, mas não para sempre.

segunda-feira, 29 de agosto de 2011

Trabalho voluntário

Vejo tantos elogiando o trabalho voluntário e nem sei por quê. Acredito que seja pelo ar de filantropia, de abnegação, de disponibilidade aos demais que supostamente parece conter tal atitude. Penso diferente, penso que isso é uma obrigação de todo cidadão decente. Particularmente, só faço trabalho voluntário, mesmo porque trabalho pago ou assalariado, para mim, é trabalho escravo, o que nunca pratiquei, nem pretendo. O ócio é o meu negócio, e passo meu tempo dedicado aos afazeres desinteressados e ao meu aperfeiçoamento, estudando os grandes pensamentos e apreciando os gestos humanos onde eles se manifestam. Meu ócio não tem justificativa moral, nem precisa, visto que não atinge ao próximo; também não serve de receita, pois que é preciso coragem e disposição para enfrentar a corrente contrária daqueles que promovem outros valores. É voluntário meu plantio de árvores pelas ruas e praças da cidade, assim como minha ajuda aos que precisam dos meus poucos préstimos. Mas, se não acho grande virtude no trabalho voluntário, vejo uma profunda fraqueza naqueles que se submetem ao trabalho assalariado, por maior que seja o salário. Escravos da moral judaico-cristã, onde acreditam falsamente que o ócio é ocasião para os vícios, findam acreditando também que a essência humana está no trabalho, quando a mesma só se revela plenamente quando em ambiente descontraído e de confiança. Assim, a maioria passa a vida cumprindo tarefas e demandas sociais, gerando uma hiperatividade consumista que deixa a todos indolentes e covardes, escravos mentais de esquematismos de vida, o que faz não ousar andar com pernas próprias. Em todas as épocas e em todos os tempos, os homens sempre se dividiram entre escravos e livres, e nem sempre porque se impõe a escravidão aos homens, mas porque grande parte prefere a comodidade da obediência, a incerteza da ousadia de ser senhor de si; a maioria segue a manada e não tem coragem de fazer seu próprio caminho. Hoje não é diferente, apenas os senhores não precisam mais de chicotes e correntes, basta o estalar de algumas moedas para que inúmeros venham lhe lamber a mão, ou até mesmo os pés, ainda que imundos.

quinta-feira, 25 de agosto de 2011

Da série pensamentos evacuados

Quando se está em público e com forte necessidade de defecar, um banheiro imundo é melhor que nenhum banheiro. O nojo do local, se advir, será após o sagrado alívio.

Um lugar sagrado

Uma boa evacuada algum tempo depois de uma farta refeição é uma das poucas coisas que satisfaz a todos, do bebê ao idoso. Somos tão iguais mesmo com todas nossas diferenças. Mas, não é um prazer que se fale, ou mesmo que se compartilhe; cada um em seu canto quer apenas aliviar a carga dos excessos ou dos restos, solitariamente. Talvez, seja uma das poucas vezes naquele dia que se pode desfrutar da intimidade e que se é respeitado na solidão. É uma pena a situação carregar tantos estigmas, de assunto inoportuno a comentário supostamente nojento, afora que muitos passam por constrangimento sobre a temática, tanto que procuram disfarçar e fazerem escondido de todos. E cada um se dirige, escondido ou sorrateiramente, ao banheiro, do qual não sai apenas cheiro ou pessoas aliviadas, sai também idéias, decisões, reflexões, listas de afazeres. Por sinal, considero o banheiro um lugar sagrado (um dos poucos que restaram no mundo contemporâneo), seja o doméstico, seja o público, um altar da intimidade, um templo à individualidade, e muitas vezes só lá nos revelamos inteiramente, fazendo ocasionalmente careta na frente do espelho. Só lá percebemos os traços do passar do tempo, despidos dos disfarces das roupas; lá tentamos tirar todas as sujeiras através da urina, das fezes, dos banhos, da esfregação das unhas, das orelhas e dos dentes, e assoando o nariz, tentando nos purificar; lá esprememos as feridas, os cravos e as espinhas; lá trancamos o mundo do lado de fora; lá, muitas vezes, é o único lugar em que somos respeitados e deixados em paz, onde nossa ausência é justificada. E a não ser que demore demais e a necessidade de outro requeira o uso imediato de tais acomodações, pode-se ler sossegadamente e sem ser perturbado, de forma tão concentrada como poucas vezes se consegue fora desse sublime lugar.
Saudações evacuantes!

terça-feira, 23 de agosto de 2011

O ministério da saúde adverte!

Esse blog contém odores fétidos que podem ser letais para os valores morais ou mesmo para as convicções existenciais. Contém muitas dúvidas sobre certezas arraigadas. É totalmente desaconselhável para pessoas emocionalmente imaturas, psicologicamente instáveis e filosoficamente frágeis. Não é recomendável para aqueles que querem paz de espírito ou sossego mental. É um forte estimulante da discórdia e da discordância. O uso abusivo pode gerar profundo tédio. Há casos de vômitos ou de violência após a leitura de algumas passagens simplesmente nojentas, tanto na forma de ver, como na forma de descrever o problema. Também há relatos de efeitos colaterais nefastos, onde pessoas findam tratando a merda como alguma coisa usual, do dia a dia, o que de fato é, mesmo que escondam, ou ainda repetindo e espalhando suas máximas como se fossem sensatas ou mesmo razoáveis, e aplicando-as ao cotidiano delas. As autoridades categoricamente contra-indicam para o caso do desenvolvimento da religiosidade, para a formação para o trabalho e para a criação do espírito familiar. O uso dele em qualquer idade acarreta algum risco ao desenvolvimento espiritual, arrastando-o para o peso da materialidade das ações humanas, dos fenômenos ou das coisas. Por fim, mas não menos perigosos, os gases aqui exalados podem perdurar nas narinas por muitos dias, quando não anos ou mesmo para a vida inteira.

segunda-feira, 22 de agosto de 2011

Meu futuro

Serei afamado pelas coisas que não fiz, nem pretendo fazer. No futuro, dirão: eis alguém que não trabalhou, nem tinha profissão; não teve filhos, nem se casou; não amou, nem odiou; não elegeu ninguém, nem foi candidato a nada; não aderiu e nem se opôs aos interesses públicos ou privados; não participou e nem se opôs a que participassem dos movimentos sociais. Eis uma pessoa que não agiu contra alguém e nem realizou conspirações contra os demais, que não roubou, matou ou mentiu, que não buscou qualidades ou defeitos, ainda que, como todos, tivesse ambos, que não acreditou na maior parte do que as pessoas acreditam e que não comungou da maior parte dos costumes culturais, mas que também não mudou sua época. Eis finalmente alguém que conseguiu se qualificar num mundo com tão poucas qualidades, por ter feito poucas merdas num lugar cheio de cagadas! E se não salvou o mundo com os seus gritos de alerta, que são esses e outros escritos, pouco ou mesmo nada fez para piorá-lo. Eis, por fim, um homem que não liderou nem quis ser liderado, que passou a vida cuidando de suas poucas coisas e não perturbando os demais na realização das suas.

quarta-feira, 17 de agosto de 2011

As coisas miúdas de cada dia

Só vejo coisas miúdas na maior parte das ações humanas, acho que o homem vem apequenando-se. Brigam, matam e morrem por miudezas. Apegam-se cada vez mais nas suas pequenas posses, nas suas pequenas idéias, com a vida girando ao redor do criado mudo do quarto de cada um. Nada do que dizem ou mostram me parece grande, e não há pequenez maior que a grandeza que ostentam, totalmente sem mérito. De grande vejo apenas a ignorância da maior parte, assim como a minha. E quanto maior se querem mostrar, menor vejo as coisas. Miúda é a religiosidade e a maior parte dos sentimentos humanos pela falta de honestidade, mais particularmente o amor; miúda são a política, a arte e o esporte; miúda é a vida doméstica e suas pequenas e detalhadas regras; miúda é a vida social e sua luta pequena por seus infindáveis interesses, quase todos miúdos ou supérfluos; miúdas são as grandes cidades. Nem os supostos grandes gestos de ajuda ao próximo, caridade ou abnegação pública possuem virtudes; isso me parece uma obrigação, e sua ausência nas pessoas não gera apenas pessoas sem méritos, mas antes desobedientes dos seus deveres. Há poucas coisas realmente dignas nessa vida, mas poucas são apreciadas. Por exemplo, seria grandeza da parte de cada um, ao invés de buscar alguma grandeza perante os demais, lutar pela igualdade, mas muito poucos são aqueles que não querem se destacar. Para ser honesto, vejo grandeza nos pequenos, naqueles que não ousam querer governar, legislar ou julgar os homens; esses têm a sabedoria de que são inaptos para ordenar aos demais, visto que quase todos mal ordenam a si mesmos. Também enxergo alguma grandeza em pequenos gestos, plantar hortaliças e algumas frutas é mais útil a todos, a começar pela própria pessoa que desfruta diretamente do seu trabalho. Não brigar é um dos maiores gestos de grandeza, ainda que muitos considerem covardia, pois possuem idéias miúdas, como é a maior parte das idéias humanas. No mais, muita gente miúda brigando por ninharia. E eu que não sou grande, também não sou miúdo, assim vou trafegando entre coisas pequenas apenas em busca de algum conforto emocional no encontro com pessoas, que tenham a grandeza de não serem miúdas.

segunda-feira, 15 de agosto de 2011

Um desavisado coco na calçada

Algum cachorro deixou restos, seu coco no meio da calçada, para alguém desatento atolar seu pé, ou mesmo escorregar. Culpamos o irracional do dono pela ocorrência, afinal o animal apenas segue suas necessidades básicas, que nem são tantas e são previsíveis, pois não são como nós que vivemos criando necessidades. Já o animal do dono do cachorro que leva o seu cão para o passeio, o que é saudável para ambos, é quem deixa o coco para trás, para qualquer um pisar, pouco se importando com os demais cidadãos, que podem até patinar na bosta e cair de forma trágica, e daí que vem a merda mesmo. Talvez, aqueles que deixam de recolher o coco do seu cachorro já tenham causado danos graves, irreparáveis, e sem dor de consciência continuam cotidianamente cagando pelas calçadas através dos seus cachorros. Muitos querem castigos mais duros para esses relapsos, leis mais rígidas para esses cidadãos não-republicanos, mas se castigos ou leis adiantassem contra as cagadas, não existiriam tantas; sou pela repreensão educativa, no máximo faria o dono pisar na cagada do cachorro para sentir o que já senti inúmeras vezes, e invariavelmente, como eu, bradar: que merda! Seria tão mais simples de viver se cada um cuidasse de suas merdas, ao invés de deixar por aí, fingindo não ser sua ou que não tem nada com a substância nojenta ali presente.

quinta-feira, 11 de agosto de 2011

O declínio da era econômica

A era econômica está chegando ao seu triste fim, está com seus dias contados: não só as dívidas das pessoas, das empresas, dos agricultores estão se tornando impagáveis, mas dos próprios Estados. Paradoxalmente, a era econômica foi uma época de dívidas. Estados, instituições, empresas e particulares se endividavam, como se fosse necessário, ou natural, ou inevitável, ou mesmo bem ou bom. Mesmo os enriquecidos, pessoas físicas, jurídicas ou estatais, se endividavam. E todos eram avaliados por sua capacidade de endividamento: o bom sujeito ou o bom cidadão, ou mesmo o bom Estado, era aquele que conseguia crédito na praça; todos valiam o limite de crédito que obtinham no banco. Todos se endividavam para terem coisas, aumentarem o patrimônio (ou a capacidade de endividamento) e os gastos. Não era a falta do necessário que endividava, mas do supérfluo; não era a falta do calçado que gerava o carnê de prestação, mas do tênis de grife, do sapato de marca, do produto de determinada loja. O que virá depois que todos não conseguirem pagar ou receber, quando a crise de pagamento atingir a todos? Os pessimistas provavelmente preverão o caos e a violência, o que já ocorre. Estou entre os otimistas, e prevejo uma vida menos agitada, ansiosa e depressiva, dedicada ao ócio, e nem tanto aos negócios, onde se cultivará mais jardins, ao invés de construir Shopping Center hipotecado, repleto de lojistas e consumidores endividados.

terça-feira, 9 de agosto de 2011

Desregulamente a vida

Não! Não se desespere. Não tenha medo. O medo foi adquirido e nos ilude sobre nossos verdadeiros fracassos. Quão mais cômodo é culpar os temores causados pelo existir dos demais. São eles, os demais, os outros, aquilo tudo que não somos, aqueles que acreditamos que tem poder, aqueles que parecem ter algo que não somos capaz de ter, todos eles parecem existir apenas para impedir o nosso sucesso ou ocupar nosso posto social. Que coisa menor e pequena da pobre criança homem, que não consegue desejar algo para si que não seja a cópia de algo que já está aí. Pobre homem que se enriquece sem adquirir valor, pobre humanidade que empobrece ao se enriquecer. Sentiria pena e talvez conseguisse atingir essa coisa meio doentia e perversa que denominam de piedade, se fosse algum tipo de santo ou deus, mas sendo tão somente homem, sinto raiva mesmo, ao ver tantos acorrentados nas coisas passageiras que tem apenas valor de uso e de troca, ou em religiões, que ao libertá-los das responsabilidades, prendem-lhes os gestos espontâneos e tiraniza o desejar, ou ainda em idolatrias que faz parecer que alguém possa valer mais do que qualquer outra pessoa ou mesmo bicho, planta e pedra. Ninguém vale tanto que mereça seja pena, piedade ou uma áurea de superioridade sobre os demais. E para ver tudo isso como digo é necessária a imaginação para a verdade da realidade: basta não mentir, nem inventar trapaças que mudam o sentido, para que, o que antes estava claro, finde duvidoso. Desregulamente o entendimento para entender a regulamentação do destino de todos.

quarta-feira, 3 de agosto de 2011

Daquilo que não se deve dizer

Há pessoas que dizem tudo que pensam. Só o fazem porque pensam pouco. Outros só dizem o que se quer ouvir, o que não é preciso ser ouvido. Tem aqueles que dizem tudo com segundas intenções, de forma dúbia, que pode ser distorcido. Há os que falam demais e pouco dizem, ou ainda aqueles que dizem muitas bobagens. Sem dúvida há também aqueles que mentem. Poucos sabem ficar calado. De minha parte, posso garantir, há muito tempo percebi que as verdades são mal vistas, que a honestidade o torna desprezível, que o verídico é transmutável em boato e que apreciar a justiça dos atos humanos torna o apreciador suspeito. Mas, temos que nos comunicar. O que dizer que não seja o que não possa ou não deva ser dito? A verdade está descartada para não ser desprezível. Restam as mentiras, que quando bem ditas, são muito mais convincentes que a simplória veracidade. Entretanto, visto que alguma coisa precisa ser dita e não sou dado às mentiras, pois tenho memória curta, e não posso dizer verdades para não ser desprezado, prefiro falar das bobagens que são ditas por todos que falam. Fundamentalmente, falo de merda.

segunda-feira, 1 de agosto de 2011

Amontoado de coisas

Diferente sim, indiferente não! Nada que é vivo me passa despercebido. Vejo até as coisas indiferentes, sinto o cheiro horroroso da fedentina das relações humanas, percebo a presença de outra pessoa à distância e até antecipo ocorrências. Dos amores, quero distância para conviver pacificamente comigo e sofrer por dores próprias. Dos lugares, apenas um local para acomodar-me por algum tempo antes que me mova para outro lugar ou outra idéia. Das pessoas, se possível, suas amizades e alguma conversa interessante. No mais, acho desnecessário acrescentar coisas nas nossas vidas, que tomam tempo para guardá-las ou limpá-las, para cuidar de tudo, que sempre exige algum cuidado, mesmo os sentimentos. Sofro com o que se faz da vida, com o trabalho em excesso e mal pago, com o roubo, com a mentira, com o anti-republicanismo da maioria, com a falta de humanismo generalizado, com o egoísmo, com a exploração e com a extorsão. Alguns são tão ignorantes que a maldade se torna razoável, outros, vaidosos, buscam o brilho que ofusca, não a luz que ilumina, e ainda há aqueles que se drogam com esporte, religião, política, música, cinema, internet, jogos e até mesmo com drogas. E diante de tantas coisas há ainda aqueles alucinados que cometem atentados contra todos, qualquer um, eu, você ou alguém próximo, por algum motivo torpe, por alguma causa estúpida, para roubar a porcaria do relógio que carrega no pulso. Não pense que não acontece aqui, que não acontece em vários lugares, pense apenas que qualquer lugar é suscetível para a arrogância daqueles que se acreditam acima das leis e do justo, seja em benefício próprio, seja em benefício de alguma alucinação. Assim, um pobre mortal como qualquer um, como eu mesmo, como você, pode sofrer algum atentado, ou assistir tais cenas pela TV, ou ter alguém próximo que se danou e ter que levar flores no velório. Você poderia perguntar, mas por que a desgraça de algum desgraçado aconteceria justamente comigo? Ora, por que não você ou comigo? Não vivemos, não habitamos esse mundo, não transitamos por aí, pois então, somos vítimas em potencial. Quanto a mim, nunca me preocupou virar um cadáver, e ninguém mais do que eu mesmo perderá com a minha morte, senão apenas eu mesmo, porém já não precisarei mais reclamar das ocorrências dessa vida. Isso não é um consolo, é tão somente uma óbvia constatação.