quarta-feira, 30 de novembro de 2011

Velhas novidades antigas e inovadoras

Refiro-me as palavras. Que posso dizer senão que as palavras permitem muitas coisas, mas principalmente a brincadeira com os sentidos. Que ainda que os termos sejam antigos, os usos e abusos dos mesmos são novos, fora o que se inventa; que a palavra envolve, desvela, acoberta, simula, espelha, reflete e expande sentidos; que não têm dono e qualquer um pode sair por aí a significar novas coisas com velhos termos. Que se constrói e destrói mundos, pessoas e coisas com elas. No mais, só mais algumas palavras para terminar algo que nunca tem fim, seja pela criação de novas palavras, seja para novas significações que se pode obter de antigos termos. O fato é que, com elas, o fim pode estar no aqui e agora ou no depois, enquanto com um simples pulo de mais algumas palavras, cá está o ponto final. Não porque terminou, mas porque se tem que encerrar.  Quando tudo pode ser dito, é preferível se calar.

terça-feira, 29 de novembro de 2011

Sobre a verdade

A verdade é que ninguém quer saber dela, essa ilustre excluída, mais que desconhecida, a começar pelas pequenas verdades. Nem é tanto que não conheçam, o que já seria um problema sério, o que apavora é uma certa aversão a conhecer verdades, elementares ou não. Não sabem e têm aversão de quem sabe. É que parece que a verdade só existe para estragar os prazeres, para revelar as baixezas e a crueza dos fatos, contendo certa depreciação, a triste certeza do engano, do erro, do equívoco, da falsidade, quando não da própria maldade, essa coisa que se incorre em algum momento ou outro. E eu que normalmente aprecio o que ninguém gosta, aprecio algumas verdades, e por isso sou condenado pelas mentiras que não cometo ou pelas falsidades que não enuncio. Não! Não lamento as verdades que não existem, mas aquelas que dizem que existem sem outra evidência que suas convicções, que posso até respeitar, se merecerem, mas jamais aceitar como prova.  A grande verdade é que existem inúmeras mentiras e infindáveis falsidades, e a função de uma pessoa razoavelmente honesta não é tentar acabar com estas, mas enunciar a sua verdade: a veracidade tem o estranho dom do convencimento pela impossibilidade de rebatê-la com os fatos, pois que esses já se apresentaram na sua enunciação.

Humano, demasiado desumano

A ciência já não pode destrinchar o ser humano. Tudo precisa passar antes pelo aval de algum comitê intrometido, para ver, não se tal método chega à verdade, ou mesmo se a verdade é razoável, mas se a busca da verdade não interfere em direitos supostamente inalienáveis. Direitos que nem precisam ser rompidos de fato, basta que sejam supostamente ignorados em alguma remota hipótese, e tornar-se assim uma fonte de renda para advogados, prontos para imporem a tirania dos direitos através de infindáveis processos. Entender o homem, ou melhor, tentar, tem se tornado um exercício burocrático e jurídico, não mais algo epistemológico, cheio de processos transitando por organismos governamentais, prontos a barrar o que não entende. O fato é que não se encontra mais as verdades sem cometer várias ilegalidades jurídicas: a polícia que o diga! Não se pode pressupor que o certo está completamente errado, que o justo é no mais das vezes bastante injusto, sem cometer vários ilícitos penais. As verdades dos fatos devem se adequar e estarem submetidas às leis jurídicas, coisa mais imprecisa e falaciosa. Por sorte, minhas pesquisas são livrescas, nem precisam de financiamento, caso contrário, há muito tempo teria abandonado esse projeto ambicioso de escrever a História Universal da Ignorância: como antes de sabermos que estamos certos em algum momento, como agora, sabia-se que estava errado antes; como atirando num alvo, se acerta em outro quando se inicia uma pesquisa; que o acerto é raro, temporário e incerto. E sem dúvida, a ignorância tem sido mais a grande condutora da humanidade, que supostamente sabedorias, que, invariavelmente, algumas gerações depois, serão consideradas ignorâncias e superstições. Viajando pela história humana se vê quantas tolices pareceram razoáveis, quantos medos eram irreais, superstições, quantas barbaridades se cometeram em nome da verdade, que logo depois se revelaram falsas ou mesmo mentirosas. A mentira e a falsidade imperam pela trajetória humana, assim como a sua carnificina, hoje amenizada, mas ainda presente. Que a capacidade de cometer o suicídio e a mentira é que nos distingue dos demais animais, não a razão, ainda que seja a razão que nos dá essa possibilidade de exercer tais atos. Enfim, fazer uma história mais realista do ser humano, menos antropocêntrica, menos racional, salientando não a ausência da racionalidade, mas antes como a mesma se submete as paixões, como opera com princípios sem provas imparciais, como induz mais que deduz os fatos, como seduz mais do que convence os demais. Por fim, mas não menos verdadeiro, mostrar como as desgraças de alguns resultam num ganho para outros, que mesmo a morte traz lucro, que o crescimento de alguns ocorreu pela apequenamento de muitos, que a vitória de um acarreta na derrota de vários. E que tudo que se afirma que é desumano é tipicamente humano: a crueldade, a vingança, a mentira, a inveja, a cobiça, o estupro, a morte banal e torpe do semelhante, e que a justiça no mais das vezes é apenas um termo da linguagem usual, mais que uma realidade avistada em fatos, gestos ou ditos.

segunda-feira, 28 de novembro de 2011

Da série pensamentos evacuados

Quanto mais vejo como a Europa está se enforcando nos seus próprios intestinos, mais agradeço de morar no cu do mundo, bem distante das instâncias decisórias e do centro de atenções internacionais, que hoje propõem o suicídio da sociedade civil para salvar o falecido e excremental sistema financeiro. E enquanto o continente chafurda-se em suas próprias bostas, o resto do mundo vê um bom negócio, algo para comprar barato, pois que crise, muitos sabem, é também o momento da oportunidade; mais do que o fim, enxergam a mudança e a novidade. Hoje, no mundo, se tem mais dívidas que bens para pagá-las. Endivida-se até as dívidas!

Não tenho dono, nem sou dono de ninguém!

Não tenho patrão, chefe, superior, governante ou senhor que possa me impor o que quer que queira. Não me submeto inteiramente nem a mim mesmo! Não tenho pátria, ainda que viva numa; não tenho família, ainda que descenda de uma; sou um cidadão do mundo, pessoa, gente, um indivíduo médio que se avista por toda parte, cuja grande peculiaridade é não ter peculiaridade alguma. Estou dissolvido na multidão, que apresenta excrescências bem piores que a minha, bem mais notáveis, prejudiciais aos demais. Não é o meu caso que, se ajudo pouco, não prejudico ninguém. Desfruto de autonomia, sigo as minhas normas sem nada obrigar aos outros, planejo o meu destino e almejo apenas coisas primárias: não ser infeliz e com o menor esforço possível. Há aqueles fracos que se ajoelham diante de qualquer autoridade, até mesmo dos farsantes dos sacerdotes; esses são escravos dos seus medos. Se vê pessoas ajoelhadas diante do amor, da amizade, da inteligência, da camaradagem, que mesmo sendo causas supostamente nobres, só são dignas quando erguem as pessoas, nunca quando as ajoelham. Sou daqueles que exerce sua liberdade com muita dignidade, erguido, livre de tudo e de todos, e deixando todos livres; preocupado mais com a busca da felicidade do que com algum tipo de excelência tão bem quista pelo mercado, do qual, sinceramente, quero uma distância razoável, de tal modo a não me deixar vender ou comprar como qualquer coisa barata, como aquilo que está se tornando as pessoas, coisas mais do que descartáveis, deletáveis! Ninguém quer mais habitar o mundo, todos querem entrar em algum arquivo grande, viver em rede, falar com milhares de pessoas sem dizer nada de significativo, e não ser deletado lá de dentro; não há nem grandes gestos, nem grandes dizeres, tão somente uma triste ladainha do mesmo. Nem a violência dos costumes consegue me coagir a desistir do meu caminho, que não tem grandes passos, apenas passos próprios, pequenas vitórias contra a mediocridade da vida contemporânea. Se não estou livre de ser um medíocre, pelo menos serei autêntico, sem me espelhar na idiotice alheia. Muitos me agradecem por ser como sou, sendo solteiro e sem trabalhar, sempre estou disponível, até mesmo em horário de trabalho. Quantos podem contar com alguém para passar a noite em claro conversando sobre as cagadas humanas? Quantos estão disponíveis para ouvir pacientemente seus infortúnios ou falsos sucessos, e ser capaz de mostrar que a coisa poderia ser bem pior, ou bem melhor, e você acabar descobrindo que seu sofrimento é pequeno, ou que o sucesso é irrisório, diante das dores do mundo? Enfim, carrego minha existência sob leme próprio, trafegando com as pessoas pelos caminhos que traço e destraço a cada dia, trocando experiências existenciais sobre a porcaria diária que se avista por toda parte. Sou daqueles poucos que não carrega suas infelicidades por aonde vai, elas só existem enquanto ocorrem, e logo depois até esqueço que existiram; não merecem meus lamentos. Mas, também não exalto a felicidade, essa coisa passageira e extemporânea, ocasional; via de regra, contento-me com um dia após o outro com pouca ou nenhuma dificuldade. Se há alguma sabedoria em mim, é saber que fui feito para as pequenas coisas, cuidar de árvores, cachorros e gatos, nunca de gente, de que há mais valor numa conversa do que na maioria das coisas que o dinheiro pode comprar, e me refestelar mais com os amigos que tenho que nas coisas que possa conseguir.

Ruminação n° 3

Eis que aqui estou. No privado, dentro de mim? Com certeza..... mas, eu que aqui estou privadamente, não sei onde estou em mim, no meu corpo, e ainda assim vejo tantas coisas dentro de mim. Esse privado tem um pouco de intimidade, de coisas particulares, de percepções, sensações, pensamentos, emoções, razões, imaginações, relações, problemas e tantas outras coisas para as quais não encontro palavras. Talvez, o mais privado de (e para) mim: eu mesmo. Todavia, isso nunca me preocupou e não será agora que irá começar. Se está na alma, no corpo, em ambos, em nenhum, pouco importa, o que importa é que esteja em mim, esse ser que escreve essas palavras (que agora escrevo e que agora lê, feitos em momentos diferentes, mas que ocorrem agora também). Tenha ou não tenha alma, mente, razão, consciência, esteja certo ou errado, sou eu que digo essas coisas, erradas ou certas....., ou não?
Por que as palavras? E por que escrever? Para falarmos do mundo e de nós, entre nós, para nós, e até com nós mesmos. Que esse privado me pertence seja verdade, só conheço-o porquê uma série de palavras que me ensinaram ou aprendi por conta própria (permitido a mim mesmo com um pouco de auto-determinação metafísica nos momentos de ócio) me apontaram sua significação, que só se completa com o aval público, que lhe aponta o lugar entre os homens. E boa parte das palavras aponta para coisas que não podem ser indicadas com o dedo ou ser mensuradas, como amizade, amor, afeto, certeza, dúvida, pois ainda que possa sentir ou pensar individualmente, eles dependem para existir do outro (seja esse outro um, vários ou mesmo todos), que me diz o que não percebo por mim mesmo. Vingo-me fazendo o mesmo a todos. O que não pode ser negado é que a significação privada, para poder existir plenamente, precisa do público, sem o qual, aliás, não seríamos nada, nem ao menos privados, pois sem a platéia a nos assistir, nada somos ou representamos. Seja lá o que seja, sou o que faço entre os homens, pelo que merecerei ser lembrado ou devidamente esquecido.
Quanto às palavras, penso que, não a razão (essa coisa comprometida com a certeza), mas a razoabilidade nos indica que se conhece muitas, usa-se poucas, que muitas são confusas, outras não indicam nada, que muitas são ambíguas, assim é aconselhável apropriar-se delas com muito comedimento. Aristóteles diria para não pegar os termos muitos grandes (extensos em significação), nem os muitos restritos (pequenos de conteúdo), mas o meio termo. Mas, nunca fui aristotélico, acredito no exagero e no excesso como virtudes, por exemplo, contra os atos injustos.
Por outro lado, nunca substituo algo que não sei, por algo que sei menos ainda. Se não sei onde estou, não pressuponho saber. Haja mente ou não, interno e externo, consciência, entendimento, autonomia, liberdade todos esses termos e muitos mais, me aproprio apenas quando quero significar algo para os demais, quando quero indicar algo que me parece significativo ou relevante para ser levado em conta, e, talvez, só naquele momento.
Assim, arriscando que exista liberdade, a possibilidade de agir por algum tipo de vontade própria, que permite a ação que escapa ao comportamento usual, ouso tecer alguns comentários pessoais (que podem ser privados, particulares, próprios e até mesmo impróprios (o que, no caso, escapa ao controle do emissor), ou nenhum deles), que se espera privado, mas que são públicos, mesmo que o público seja de uma pessoa só, e são também virtuais, seja pela virtualidade do veículo de comunicação, seja pela virtualidade dos sentidos que se pode ter ou induzir.
Naturalmente, se fosse para fazer um chute de onde está o “eu”, se na alma, no espírito, na mente, no cérebro, é público e notório que optaria pelo intestino; somos muito mais intestinais que supõe a vã filosofia, apenas a nossa auto-estima elevada não permite perceber, que mais que idéias, temos gases, e que endiabrados pelos odores fétidos deles, incautos acabam realizando enormes cagadas. Todavia, a rigor tudo no corpo é necessário para sermos o que somos, no corpo que conquistamos com os nossos esforços ou relaxos, dentro dos limites que a natureza estabeleceu e estabelece: sexo, idade e herança genética de saúde ou patologias. E seria tolo brigar por um lugar privilegiado onde isso ocorra em nós (e não apenas dentro, ou no corpo, não apenas em substâncias biológicas, mas também de forma eminentemente simbólica!), visto que qualquer um que tenha qualquer parte ameaçada do seu corpo, sente como uma ameaça a si mesmo.
Por fim, mas não por último em importância, tenhamos ou não alma, mente, razão, consciência, intestino ou qualquer outra designação que se queira dar como responsável pelo nosso egoísta (para não dizer mesquinho) “eu”, são palavras que designam a nossa realidade simbólica, e sua evidência é totalmente terminológica. Assim, não estranho as designações dos inexistentes no meio de tantas coisas supostamente existentes, pois os termos existindo, são inevitáveis as relações que fazem com eles. O problema quando se tem muitos termos para designar algumas atividades humanas, é que, de fato, não se tem nada de muito explicativo para demonstrar com eles. Metáforas não nos faltam para falar do homem, nem para distingui-lo dos demais animais, entretanto, quase todas, mais do que distinção, apresentam qualificações dos homens ou desqualificações dos animais.
Quanto às ciências sociais e biológicas, até o momento, carecem de isenção, carregadas que estão por uma terminologia moral, estando assim incapacitadas para tecerem opiniões que possam ser aceitas pela comunidade dos homens. Moralizam os pequenos gestos, descrevendo-os em forma de patologias e vícios, vendo purezas e impurezas por toda parte. A busca de uma normalidade inexistente cria uma anormalidade social, de alguns acharem que sabem o que é normal ou não para todos, e em todas as circunstâncias, além da anormalidade de algumas especializações de se alçarem as únicas a diagnosticarem as patologias individuais ou coletivas, e o que é pior, a sua cura!

quarta-feira, 23 de novembro de 2011

Deputados aloprados

Deputados paulistas que só servem ao bem público quando nada fazem, pois quando fazem alguma coisa, fazem as coisas erradas, quando não ilegais, resolveram errar mais uma vez. Inventaram uma lei que o motoqueiro ou a motoqueira não pode mais dar carona. Por que? Porque bandidos costumam utilizar esse veículo para cometer seus assaltos e todos nós parecemos suspeitos. O racional (se é que é um problema legal assaltos ocorrerem, e os deputados não estão se intrometendo naquilo que não têm competência, supondo metafisicamente que possam ter alguma competência) seria fazer leis para coibir a bandidagem, mas como nos consideram idiotas, as autoridades policiais incompetentes, e temem serem assaltados dessa forma, criam uma lei para só eles se beneficiarem de suas covardias, sem se importarem com as milhares de pessoas que compraram esse veículo para se locomover, em grande parte em duplas, de forma mais econômica ou ágil, ao seu serviço ou ao seu lar. Os honestos estão proibidos de ir e vir como bem quiser, porque alguns poucos desonestos se utilizam de seu tipo de veículo de locomoção. Até onde me consta, caríssimos maus legisladores, bandido também usa carro, caminhão, ônibus, enfim criatividade não lhes falta.   
Se temo os bandidos das ruas, temo mais os bandidos dos deputados, brigando por migalhas e fazendo pequenas leis. Não têm e nem propõem princípios; não enfrentam as causas, brigam com os efeitos, transferindo os problemas de um setor a outro da sociedade. Se paga muito por coisas que não tem nome feio suficiente para designar, feitas as escondidas, no corredor, na calada da noite, que chamam interesse público, mas atende apenas aos interesses privados de alguns poucos, como direi, comparsas? Não! O termo não é forte para expressar a indignação, e por que não dizer, o nojo dessa merda toda que se faz com a coisa nacional, além da grave ofensa que causam à minha inteligência. Não é à toa que a população tem tanta diarréia! E o que é pior, tudo escorre, em grande parte, à céu aberto. Já os privilégios que são dados aos deputados, esses não param de crescer (e escorrer) de forma bem anti-republicana.

Por que tudo se inicia no intestino?

Seja lá o que o homem pensa ou faça, sempre acaba em merda.

Máxima outroalgueniana

Para cada imbecil que se mata, por suicídio, cigarro, bebida ou outras coisitas mais, há cem idiotas a nos atormentar. Os desregrados prestam um serviço ecológico ao mundo e uma camaradagem com todos demais.

segunda-feira, 21 de novembro de 2011

terça-feira, 15 de novembro de 2011

Notas sobre o meu existir N° 16

Levantei, como sempre, sem ânimo, visto que, se acordamos, invariavelmente, temos que fazer coisas, o que nunca foi do meu agrado. Chegando ao banheiro notei um ar estranho no ambiente. Todos olhavam, apontavam, falavam de mim. O quê ou porque, não suspeitava. Afinal, na minha consciência nada fizera de diferente, e mesmo que não usasse sabonete, era público e notório que fedia menos do que muitos que utilizam de todos os artifícios da futilidade humana para esconder sua fedentina própria. Fiz como sempre, as necessidades básicas.
Ao me direcionar para a saída, um dos meus seguidores entregou sorrateiramente um bilhete, que li no caminho do calvário da missa matutina. Dizia:
A visita da sua mãe gerou comentários, visto ser em dia e época imprópria das visitas de todos nós. Acreditam cada vez mais nos seus poderes mágicos para obtenção dessa regalia. E alguns heréticos espalham por aí histórias de que é uma criança mimada por ela, chamado de Magrela, provavelmente, tentando diminuir seu feito de obter essa regalia”.
Bom, agora sabia o motivo. Insuportável era ouvir os risinhos de alguns, o medo nos olhos de outros, e até o padre vigilante, que sempre me tratou com algum temor, dar alguns sorrisos e parar de ficar me vigiando ininterruptamente como era seu costume. No café da manhã, um dos maiores e mais fortes da turma dos veteranos, quase padre, que desde a minha entrada procurava motivos para me provocar e eu esquivava-me, como me esquivo de tudo que dá trabalho, atravessou o salão bradando:

- E aí Magrela, mamãe veio passar talquinho no nenê?

Calmamente levantei os olhos e vi aquele mastodonte se dirigindo até mim. O padre vigilante só olhando, sem interceder. Todos observavam atentos o que estava por ocorrer. Estacionado na minha frente, com os braços cruzados para enaltecer a musculatura, disse quase cuspindo:

 - Fiquei sabendo que você é um filhinho da mamãe, que chama você de Magrela, um apelido feminino como você. Você devia estar num convento!

Todos riram, ou quase. Eu não e acredito que mais alguns também me seguiram nessa atitude. Levantei, e como não sou pessoa de sair por aí gritando, disse singelamente:

 - Não sei o que sua orelha de asno ouviu de algumas cavalgaduras que lhe são próximas, mas certamente grunhidos de animais não conseguem descrever a riqueza da convivência humana.

Nisso os 4 que assistiram meu encontro com minha mãe, levantaram-se e vieram se juntar a ele, e todos na minha frente disseram unisonicamente:

 - Repete se é homem!

 - Senhores, todos sabem que minha força não é bruta, é de outro quilate.

Agarraram-me pela batina de tal modo que meus pés mal alcançavam o chão. Ainda sufocado, disse com voz firme.

 - Mesmo um paquiderme que coloca o tigre para correr, morre com a picada da serpente! Vocês podem me por para correr, mas não escaparão do veneno da verdade que foi lançada aos quatro cantos desse salão.

Nisso o padre vigilante intercedeu, pois era visível que estavam para iniciar uma carnificina comigo, o que, devido às minhas pequenas dimensões, não demoraria mais que alguns breves minutos para ser completamente destrinchado.

 - Vamos parar com isso. Lembrem-se da palavra do senhor, perdoai!

Ninguém perdoou ninguém. E cada um foi para as suas obrigações diárias, eles cuidar do jardim, eu da lavoura. E enquanto cuidavam do jardim, eis que uma serpente pica bem na jugular daquele que me afrontou, vindo a falecer poucos instantes depois.  O soro antiofídico aplicado de imediato foi de fato um desperdício. Ocorreu uma comoção local e os boatos começaram a correr soltos. Era um falatório generalizado, todos me interrogando, muitos fugindo de mim, outros se ajoelhando e pedindo perdão por coisas que nem sabia que tinham feito contra mim, e muitos, mais do que gostaria a maioria dos padres, agora quase me venerando como um profeta, e outros tantos me temendo como um demônio.
Monsenhor chamou a todos para o pátio e começou seu discurso:

 - Senhores! Nós somos seres racionais, a grande maioria adulta, não podem continuar a acreditar nesses boatos, provavelmente lançados por ele próprio, que esse pirralho (nitidamente apontando para mim, que já via as pessoas se afastando) tenha poderes sobrenaturais! Vou mostrar a todos como deus está do nosso lado, e mesmo que esse infeliz pudesse ter os poderes que falam, mesmo que associado ao demônio, ainda assim, nós o venceríamos, pois carregamos a cruz de cristo!

Saiu do púlpito e se dirigiu na minha direção, pegou-me pela orelha e começou a puxar com força exacerbada, nisso tropeça, cai e quebra o braço que até a pouco puxava o meu inocente instrumento de audição.
Todos olharam para mim, mas nem o padre vigilante quis falar ou tocar na minha pessoa. Confuso e sem saber o que fazer, perguntei:

 - Vou para o claustro, para o cadafalso ou volto para as minhas funções?

Silêncio profundo. Fui em direção do meu claustro, mas comecei a ser seguido não apenas pelos 7 discípulos iniciais, mas agora por 12 seminaristas. E enquanto a grande maioria estava atordoada tentando levar o monsenhor para o ambulatório para os primeiros socorros, antes de se aventurar horas de barco até a cidade mais próxima com hospital, nós fomos para uma parte sombreada. Tinham muito para perguntar, pena que as respostas que iria oferecer certamente não atenderiam as expectativas de todos, visto que a visita da minha mãe devia-se ao poder do meu pai de interceder junto às autoridades, e o restante a roda da fortuna nas suas inesperadas voltas realiza alguns caprichos ao acaso. E eu era apenas a pessoa errada no momento inoportuno, que por vezes falava demais devido à jovialidade da carne.
Enquanto olhava todos voltados para mim, esperando que me manifestasse sobre o ocorrido, vi ao fundo o barco saindo levando o corpo inerte do brutamonte, mais o monsenhor reclamando de dores se afastando rio acima, mais o piloto e outros dois, um padre e um veterano. Falei:

 - Olhem! Lá vai o barco com o monsenhor.  Com essa pressa, espero que não sofra algum acidente.

Maldita boca, o barco virou antes de fazer a curva do rio e sumir de nossas vistas, como todos que o ocupavam.

Congresso do sono

Fui convidado para um congresso internacional sobre o sono, motivo pelo qual me ausentei ultimamente da minha vida virtual. Haveria abordagens médicas, psicológicas, sociológicas, antropológicas, econômicas, e um amigo (sic!) resolveu que poderia fazer uma abordagem filosófica desse fenômeno. Após cansar-me de recusar tal convite, acabei cedendo e fiz minha comunicação. Nela abordava a saudável e importante questão do sono: quanto mais as pessoas dormissem, menos bobagens faziam, diziam ou pensavam. Ao fim da minha comunicação, lida monotonamente durante duas horas, todos dormiam. Considerei um sucesso e bastante apropriado à temática levantada. Aliás, no que me diz respeito, todo congresso foi pleno de sucesso, quase todos dormiam durante as palestras, conferências e comunicações. Eu mesmo tive dificuldade para acordar ao fim desse encontro e voltar aos meus afazeres, ou melhor, ao não fazer de sempre.