segunda-feira, 28 de março de 2011

Notas sobre o meu existir N° 7

Como seria de se esperar, era um fiasco como aluno. Grego e latim foram as primeiras das inúmeras reprovações que ocorreram nas disciplinas do seminário. Línguas nunca fora meu forte e era constante ficar de segunda época desde o 1º Grau, acontecendo o mesmo no segundo e agora no curso “superior” que ora freqüentava. Não tinha ambição de sair do país, achava desde pequeno os povos do norte uns bárbaros e saqueadores que espalharam sua barbárie para o resto do mundo. Impuseram um calendário, o trabalho escravo, a ganância, sua forma de pensar miúdo e muitas outras safadezas que não cabe agora enumerar. Afinal, o que são as dores do mundo comparadas às minhas próprias naquele lugar perdido do cosmo?
Naturalmente, ninguém em sã consciência no mosteiro (se é que é possível ser são nesse lugar) acreditava que algum dia poderia me tornar um padre: estavam mais interessados na contribuição mensal do meu pai do que na minha formação. E como não atrapalhava ninguém, suportavam-me, não sem alguns castigos.
Aliás, alguns poucos padres reconheciam algum mérito em mim. Fui monitor do professor de filosofia durante minha estada em tão insalubre (mental e fisicamente) lugar. Fui ajudante de bibliotecário e responsável pela área de filosofia, história, geografia, antropologia e cultura geral. E devido a boa letra e aos poucos erros ortográficos, era convocado para secretariar as reuniões, visto que o computador, que engatinhava na época, era algo inexistente naquelas paragens. Tínhamos máquinas de datilografia mecânicas, mas que só eram utilizadas para os documentos externos. Ainda que secretariar reuniões fosse uma bosta, tendo que ficar escutando discussões sobre miudezas e deliberações medíocres, era melhor que limpar latrinas, ou lavar louça, ou......
Só sei que após um mês nesse mosteiro, cuidava apenas da limpeza da biblioteca. E a tristeza pelo aprisionamento era deixado de lado por leituras apaixonantes. Conheci a filosofia antiga, medieval, moderna e até alguns contemporâneos, esses em menor número devido ao “pecado” do materialismo ou do ateísmo da maior parte dos autores, segundo a igreja, que faz leituras equivocadas desde que começou a ler. Eu que até então só me interessava pelo materialismo, acabei conhecendo uma multiplicidade de visões. O fato é que, de repente, me dera conta que poderia realizar minha auto-formação com muita mais facilidade aqui, neste inferno, que na casa dos meus pais. Verdade que não tinha o amor familiar, nem as mordomias da classe média remediada, mas por outro lado, também não tinha outras obrigações igualmente desagradáveis que decorrem da vida social. Enclausurado, menos atenção perdia com coisas que começavam a me encantar (e desviar), como o computador, que só pude reencontrar 4 anos depois dessa vida monástica. Ou mesmo as mulheres, que tanta atenção tiveram de minha parte, sem que nunca fosse retribuído. E não por ser feio, mas por ser desajeitado com as roupas, não cultivar uma celebridade, uma música, uma religião, um esporte, um programa de televisão.... O que tinha para conversar? Nada! Faltava aquele estoque de conversa à toa que as pessoas normalmente têm, ampliado pela timidez que carrego. Podia perguntar sobre o tempo, sobre a disciplina que ela mais apreciava ou que odiava, sobre a profissão do pai dela, mas pouco mais de 5 minutos de conversa são suficientes para acabarem as perguntas de ambas as partes. Além disso, e talvez o maior dos defeitos, ainda que aprecie a dança, nunca dancei, e jamais suportei festa com música. Enfim, como dizia meu falecido pai, um inútil, nem para ser par numa dança sirvo.
Nunca considerei isso um problema. Tinha muitas coisas para pensar e descobrir, e não tinha tempo para ficar preocupado em ser desajeitado. Como todo jovem, tinha isso como uma rebeldia, pois não era apenas um revolucionário, mas um asilado político e um dissidente social, pois lutava não apenas pelas liberdades políticas, mas contra a tirania social, a obrigação de seguir etiquetas ou princípios morais arcaicos, e por uma cidadania internacional: queria ser cidadão do mundo, não de um país. Não tinha tribo, não tinha partido político, era apenas eu, trancafiado na doce prisão familiar que dava comida e roupa lavada.  Assim, apenas mudei de asilo ao aqui ser internado.
No entanto, estava determinado a manter a sanidade, fazer o mínimo necessário e esperar o tempo passar. Não faltava muito para atingir a maioridade e assim libertar-me desta prisão, aventurando-me pelo mundo afora na busca de um canto para mim. Que importância tinha algumas baratas pela cama, infindáveis missas repetitivas, suportar o assédio dos inúmeros homossexuais locais, sem ofender ou sucumbir, ter que repetir infinitos padres nossos e aves marias, ter que fazer vistas grossas para o que acontecia na calada da noite ou mesmo à luz do dia, no confessionário ou debaixo do altar, quando não por cima, se, por outro lado, podia enfrentar as adversidades com certa diplomacia e passar despercebido na biblioteca, por vezes esquecido por horas a fio? Aliás, ser esquecido pelos outros e passar despercebido é uma arte que cultivo desde tenra idade.
Esta pequena esperança fez os seis primeiros meses passar razoavelmente rápido. Minha semana de folga aproximava-se, e, quem sabe, pudesse sensibilizar meus pais para mudarem de idéia a respeito desse “meu” futuro, que para mim sempre foi um passado, algo que deixaria para trás. Tudo ia indo muito bem, eu calado no meu canto, pouco perguntando nas aulas, prestando uma atenção entediada, até que entreguei meu trabalho de introdução à teologia, cuja repercussão inesperada transcendeu as cercanias deste mosteiro, e fizeram as esperanças evanescerem-se.  Pela segunda vez sofreria as conseqüências por emitir minha opinião, quando todos falavam que vivíamos em uma democracia, com conselhos tutelares e outras firulas jurídicas, e nem maioridade tinha, ainda assim assisti novamente um texto meu ser incendiado. Não será a última vez.

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