segunda-feira, 21 de março de 2011

Notas sobre o meu existir N° 6

A notícia intempestiva do suicídio do desconhecido Josué deixou a cara do monsenhor nitidamente consternada, e antes de começar a falar com o padre apavorado, se deu conta da minha presença incômoda e mandou-me falar com o responsável pelas acomodações, padre Vitório. Salvo pelo suicídio, pensei aliviado, pois era certo que ele estava ficando bravo comigo. O importante é que minha rebeldia desapareceu e, de repente, era alguém de quem queria que guardasse sigilo do ocorrido.
O padre Vitório tinha algum carisma e foi muito receptivo. Já sabia de toda minha ficha corrida e lembrava-se de detalhes sórdidos que até já havia esquecido, como a suspensão que levei no primeiro ano do segundo grau, como constava do meu histórico escolar, por portar material pornográfico. Também tinha lido meu artigo sobre o pacifismo e igualmente considerava que não havia o que reprovar do ponto de vista cristão. Quando quis argumentar que isso era indiferente, calou-me, e disse enérgico que sabia até da minha leitura de autores ateus. E pacientemente colocou-me a par das regras que os seminaristas estão obrigados. Foi enfático nos castigos caso incorresse em alguma rebeldia.
Cada um é trancafiado às 19:00 no seu claustro, com uma garrafa de água, um pinico, uma cama, uma mesa, uma cadeira, um armário para guardar os pertences, seu material de estudo, seu caderno de anotações. Na verdade, esse é o melhor momento do dia, é o único momento em que estamos livres, com vida privada e desfrutando nossa intimidade. Às 22:00 apagam-se as luzes, ou seja, desliga-se o gerador. Quem tem vela, consegue ler ainda mais um pouco, mas não é fácil arrumar velas, e nem sempre esquecem a porta do almoxarifado aberta para furtá-las, além dos fósforos, artigo raro. Em todos os quartos há um chicote para aqueles que querem se penitenciar, o meu usava para matar baratas, mas sempre acharam que era dedicado ao suplício purificante, quando na verdade faziam vistas grossas para a quantidade infindável de baratas.
Matei inúmeras, mesmo no escuro, e não era preciso sorte, tamanho o número delas: meu chicote guarda as marcas do desgaste e dos restos ressecados dessa insignificante espécime. Naturalmente, esse exercício lúdico diminuía muito em sua eficiência ao fim da vela. Mas, para que serve o tato, ou as noites claras de luar, senão para localizar e estraçalhar essas criaturas? Quantas vezes não levantei da cama esmagando esses vermes rastejantes ao colocar meus pés no chão! Quantas não matei com a tampa do pinico ao abri-lo para o devido fim desviado por repentina aparição! Se sorte existe, dela só conheço o nome e a palavra. Devo muito da minha lucidez a esse exercício diário que praticava naquele martírio, pois, como se verá em breve, há coisas mais nojentas que baratas.
O dia começa com os sinos das 5:00. Teoricamente temos que rezar e arrumar o quarto meia hora antes que abram as portas para irmos ao banheiro tomar banho, descarregar o pinico, lavá-lo, tudo até as seis, quando começa o café, mas às 6:30 tem a primeira missa (é um inferno, missa é o que não falta neste maldito lugar), que vai até às 7:00, quando então começam as aulas, que vão até às 10:00, quando temos um intervalo de 20 minutos, e depois aula até às 12:00. Quando pensa que vem o almoço, lá vem mais uma missa, o almoço só às 12:30; aprendi a jejuar forçosamente. Passei fome! Da uma às duas da tarde é o momento que se tem para conversar entre os seminaristas, alguns jogam bola, outros cartas, outros xadrez, outros ficam sem fazer nada, e eu ia para a biblioteca.
Mas, às 14:00 começavam novas aulas até às 15:30, quando então tínhamos um intervalo de 15 minutos e depois vinham as tarefas: varrer o pátio, os corredores, a igreja, lavar roupas, limpar os banheiros, a cozinha e a as salas diversas, enfim, uma infinidade de tarefas desagradáveis, isso até às 17:30, quando então, tinha uma missa, às 18:00 a janta, mais um pouco de tempo e às 19:00 de volta ao claustro. Alguns mais higiênicos corriam para tomar banho antes de sermos trancafiados, outros ficavam fazendo pequenas coisas, e eu ia para a biblioteca pegar um livro para a noite. Visitas só uma vez por mês, e eram raras, devido à falta de estrada para lá chegar. E só saíamos duas vezes por ano, por uma semana, caso, é claro, não incorrêssemos em alguma falta com o seu inevitável castigo. Infelizmente, foi o meu caso, que fiquei sem sair, até sair para nunca mais voltar.
Não sei se posso avaliar, em toda a sua grandiosidade, o terror que foi esse período. Eu que nem descascava banana, de repente, ter que limpar um banheiro é uma decadência muito forte para qualquer um, imaginem na cabeça de um adolescente de 17 anos, sozinho num mundo obscuro, repleto de maldade. Naturalmente, fiz fantasias de fugir, mas como atravessar as matas a pé, já que estávamos distantes quilômetros da capital? Roubar um barco era a melhor opção, mas como muitos antes de mim já haviam pensado nisso, os padres tinham um controle imenso sobre os mesmos. Os que tentaram fugir pela selva tiveram que ser resgatados, perderam-se na mesmice da floresta para aqueles que não a conhece.
Esse tempo foi tão ruim e durou uma eternidade para passar, que lembro muitos detalhes desta época em que tive uma grande experiência de humildade forçada. Fui forçado a ajoelhar a imagens e símbolos, fingir uma reverência que nunca tive e jamais terei pela estúpida divindade. Mas, só ajoelhei após a terceira chicotada, afinal, uma é pouco, duas é bom, três já é demais. Vi a maldade humana agir: eram portas abrindo no silêncio da noite por padres tarados em busca de garotinhos; vi pessoas recebendo regalias por lamber a mão de superiores, outras se vendendo por qualquer quantia; convivi com a vaidade dos homens pelo poder e ascensão na hierarquia, com pessoas crédulas, medrosas, medíocres.
Podem estranhar, mas a verdade é que não fiz um único amigo. Não tive vida inteligente durante o martírio de ser um seminarista, pelo menos, não com os outros. Discutia com muitos padres e professores, com colegas, mas não apenas era tolhido nesse esporte salutar de debate de idéias, como não era levado a sério, tido como um excêntrico, quase um alucinado, e detentor de muita cultura inútil sobre o mundo secular, mas com pouco conhecimento teológico. De fato, a escolástica, com todo respeito, é abominável, para não dizer masturbatória.
Mas, só tratei da parte boa dessa experiência funesta. Mesmo contar a vida dá trabalho, coisa que notavelmente abomino. Deixo assim para breve os meandros desses dias apavorantes.

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