segunda-feira, 9 de maio de 2011

Notas sobre uma filosofia intestina – no reino da opinião: a coisa e a palavra

Nada é tão público como as palavras, que sem dono ou senhor acabam significando o que queremos, e fazem existir ou deixar de existir tudo que há no mundo. Essas palavras fazem-me ocupar um espaço próprio quando falo, pois com palavras consigo apontar para coisas em mim ou no mundo, que não consigo indicar com o dedo ou fazer aparecer na foto. Ao falar se ouve, por vezes se entende e outras nem tanto. E falando o mundo se enriquece, podemos expressar nossa opinião, podemos convencionar novos termos e novas expressões. Sabemos que existimos porque falamos, ainda que pouco se saiba propriamente a respeito do existir.
O mundo, por exemplo, cabe numa reles palavra – mundo – , assim como a vida e tudo mais. Mas, ainda que cada coisa tenha sua palavra, tem palavra que não tem coisa, e tem coisa para a qual não encontramos palavras. Ainda assim, insistimos em dobrar o universo e a existência às idéias que irradiamos e absorvemos no alegre conviver pelas palavras que estabelecem sentido. Somos uma máquina de significação! Aprendemos significações e criamos nossas próprias, de tal modo que nada está estabelecido para sempre. A palavra e a sua troca subjetiva entre os indivíduos faz com que cada um possa utilizá-las para convencer ou ser convencido de novos sentidos para coisas antigas, transformando as compreensões ou criando novas.
Com as palavras podemos tudo, até mudar as essências das coisas, pelo menos na sua significação. E só significação é que fazemos, nunca atingimos a coisa mesma. Quando perguntamos "o que é um charuto?", ou "o que é um distúrbio?", veremos que a resposta depende da recepção que se faz deste objeto ou desta ação, ou seja, da pessoa que recepciona, do contexto, da época e da situação, e ainda que existam as coisas (Charuto e Distúrbio), nos guiamos pelo sentido que estabelecemos sobre as coisas, não pelas coisas mesmas.
Veja o charuto, quantas significações não teve? Churchil e Freud ostentavam os seus, hoje está banido da maior parte dos recintos, e aí do chefe de Estado que o ostente (tudo é apreciado na alcova). Assim, charutos e distúrbios perambulam por aí e por aqui, e nem esse charuto que aqui apareceu, nem o distúrbio que aí pode ter ocorrido, são mais que palavras que querem estabelecer uma significação. E os objetos ou ação que se referem as palavras não deixam de direcionar a nossa sensibilidade sobre o meio, a perceber isso e não reparar naquilo, a salientar um aspecto e, talvez, desconhecer por completo outros. Quanto mais coisas conseguimos designar, mais objetos terá o nosso mundo. Mas, como a visão acaba sempre parcial, eis que precisamos do outro para nos fazer ver o que não vemos na nossa forma de descrever.
Enfim, tudo tem o sentido que se atribui e os demais concordam. E basta acreditar numa palavra para a coisa a que se refere passe a existir, pelo menos para quem acredita; quem acredita em inferno vê o demônio agindo pelo mundo; quem acredita em fantasma assusta-se com sombras que denomina de assombrações.
Todavia, a comunicação tem limites e as coisas podem não ser percebidas, ainda que tente descrevê-las. Há um problema de referência que limita a percepção do dito. Por exemplo, falo do cheiro acentuado do pequi, mas para conhecê-lo é preciso experimentá-lo; falar que o cheiro é singular é o mesmo que nada dizer, pois cada coisa tem o seu cheiro singular. Assim como a cor para o cego, ele pode saber a cor da árvore ou do pássaro, mas nada saber da cor, pois que para a percepção da cor é preciso da experiência da visão. Palavras não substituem a vida, a descrevem e servem para nos comunicar. Mas, sem elas, como saberíamos da existência do pequi e que ele tem um cheiro peculiar, mesmo que nunca venha a conhecer essa peculiaridade? Ou, ainda que o cego não saiba o que é verde ou vermelho, não é desprezível que ele saiba do fato da árvore ser verde e o pássaro vermelho, mesmo que não possa saber exatamente o que é a cor, seja verde ou vermelho. Ora, não deixa de haver um enriquecimento conceitual.
Fazemos significações, em grande parte significações insignificantes, é verdade, e procurar o sentido de tudo pode parecer sem sentido e chato, concordo, mas o interessante e o que importa é tornar tudo aberto para novas significações que vamos dando às palavras. E que importância pode ter o sentido obtido, se será mudado? Mas, é com essas palavras que agora escrevo e que agora lê que acabamos dando a significação de nossa própria existência. O fato é que de todas as brincadeiras inventadas pelo homem, é a mais democrática, a única verdadeiramente pública, pois todos munidos delas podem mudar a forma de significar. E a ninguém está vedado ou vetado falar, ainda que merda. A todos está dado emitir sua opinião e problemático é não emiti-la. E tudo nesse mundo é tão somente opinião, seja do cientista, seja do religioso, seja do político, seja do homem comum.
Com palavras produzimos alucinações coletivas e não apenas individuais, sentimentos cívicos, a sensação de pertencimento. Ainda que por vezes as palavras parecem não ter referência direta com objetos ou eventos que elas significam, promovem impulsos emocionais coletivos, e realizam um papel de instrumento organizador da experiência, onde as coisas que conhecemos são efetivamente, no imaginário coletivo, nossas concepções e são concepções de alguma coisa real, o que é uma objetividade para nós, ainda que possa ser idiossincrático a outro. A linguagem formata as coisas, os fatos, as relações e está ela própria condicionada pelo ambiente que a desenvolve. Não há elementos nesse mundo que não sejam modelados de algum modo por nossos conceitos!
O fator aglutinante e desaglutinante da palavra, sua capacidade de nos fazer entender e desentender, de promover a comunhão e a excomunhão, de possibilitar a certeza e a dúvida não deve ser motivo para pânico ou exaltação; só serve de constatação. Problemático é calar-se, principalmente, diante da injustiça.
Saudações verborrágicas!

3 comentários:

  1. Estou impressionada com esse longo texto, onde você fala sobre as palavras, e a única palavra predileta sua que encontrei foi uma: merda.

    Adorei a colocação da palavra 'pertencimento'...

    Sou uma encantada pelas palavras e pelos conceitos... Elas somos nós. Elas são cada um... Que coisa incrível!

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  2. Aqui nos EUA, exitem muitas Tabacarias. Inclusive com espaços nas próprias, para os apreciadores dos charutos poderem saboreá-los e conversar com os outros amantes do mesmo hábito. Por incrível que possa parecer, há muitas mulheres fumando seus charutos. Existem muitos que adoram fumar essa coisa mal cheirosa...

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  3. Cabe-nos a tarefa irrecusável, seríssima, dia a dia renovada, de - com a máxima imediaticidade e adequação possíveis - fazer coincidir a palavra com a coisa sentida, contemplada, pensada, experimentada, imaginada ou produzida pela razão.
    Que cada um tente fazê-lo.
    Verificará que é muito mais difícil do que se costuma pensar.
    Porque para os homens, infelizmente, as palavras são de um modo geral toscos substitutos.
    Na maior parte das vezes o homem pensa ou sabe melhor do que aquilo que exprime.

    Nosso sempre Johann Wolfgang von Goethe, in 'Máximas e Reflexões'

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