segunda-feira, 16 de maio de 2011

Notas sobre o meu existir N° 11

Será preciso dizer que a crueldade humana só não é maior que a ignorância, essa ainda mais universal, abrangente e ilimitada? Acreditem, sei o sabor amargo de sua manifestação e guardo, enquanto não me decompuser após a morte,  as marcas e cicatrizes do seu exercício. Naturalmente, a dor física chama mais a atenção e parece mais saliente, mas infinitamente pior foram as dores morais.
Quando todos saíram, me despiram. As explicações científicas para tal decisão só não perdem em tolice para as explicações canônicas; acreditam que despidos, não temos onde esconder a nossa vergonha. Bom, envergonhado fiquei, não porque meus dotes físicos sejam pífios, o que, no momento, pouco levei em consideração, mas porque ficar nu na frente de um monte de homens cuja ortodoxia sexual não passava de sermão da missa de domingo, não era uma situação propriamente agradável ou confortável.
Aí me fizeram ajoelhar e lá se foram 5 chibatadas com o meu próprio chicote imundo de baratas mortas. Batem primeiro e perguntam depois; a verdade se arranca com a dor, todos eles acreditam. A primeira pergunta realizada pelo monsenhor, ainda preocupado com todos os livros encontrados no meu claustro, era como estava com 30 livros quando era permitido que cada aluno retirasse no máximo 3 da biblioteca. Bom, a pergunta constrangeu mais alguns dos professores que a mim propriamente, pois com exceção dos 3 que tinha direito (e exercido esse direito), todos os demais eram para ajudar os professores nas suas aulas, ou mesmo nos seus estudos. Foi então que o monsenhor tomou ciência do que considerou a minha influência nefasta no seminário por ele dirigido. E lá vieram mais 10 chibatadas nas costas e nas nádegas. E, é claro, logo depois a pergunta:
 - O senhor acha que não tem problema matar um cristão?
 - Nunca fiz essa afirmação.
 - Mas, o senhor diz claramente que não se faz um mal ao cristão ao matá-lo.
 - Exatamente, não se comete um mal ao cristão ao matá-lo, mas um bem, pois o aproxima de deus.....
E lá vieram mais 10 chibatadas pelo resto do corpo.
 - O senhor está brincando?
 - Se estou, não estou me divertindo....... Mas, creio que nem o senhor, nem muitos dos demais entenderam minha posição teológica. Claro que há um problema quando se mata uma pessoa, mas isso independe da religião ou de sua ausência, é algo que atenta contra a vida social e a confiança mútua. Apenas, que não se faz mal ao cristão quando se mata um, pois a ser verdade as escrituras, o mesmo irá para perto de deus, e isso, segundo essas mesmas escrituras, é um bem supremo..... O assassino é um pecador, a se continuar a dar crédito a essas mesmas escrituras, mas a vítima nada de mal sofreu ou sofrerá, e um bom cristão jamais vinga a morte do seu suposto irmão, pois a rigor não fez um mal ao outro, mas a si mesmo....
Não deu tempo para continuar o argumento, novas chibatadas estalaram pelo meu corpo já bem avermelhado, com sangue em algumas de suas partes. E dessa vez não foi apenas o monsenhor, mas mais alguns se juntaram nessa sessão de suplício. Alguns com muita raiva e ressentimento. Ainda assim, agüentei sem gritar durante toda a extensão das dores que se espalharam de forma indiferenciada por todo corpo. No fundo, queriam que meus gritos ecoassem pelos corredores silenciosos para que os demais seminaristas ouvissem, mas raramente atendo as expectativas que esperam de mim. Tenho um rumo próprio traçado pelo meu entendimento e dele pouco me afasto.
E ainda que os estalos pudessem ser ouvidos de longe, os gritos que o sucedem, como era o costume, na medida em que não ocorriam, começou a preocupar alguns professores, pois ou demonstraria a fraqueza dos padres ou a minha força de resistência, quando não os dois simultaneamente.  De qualquer modo, chegaram à conclusão que não seria interessante continuarem nessa linha de “investigação”, uma vez que nem esclareciam o caso, nem obtinham o resultado esperado, choros, gritos, imploração e pedidos de clemência, ou mesmo a confissão de algum tipo de culpa e um conseqüente arrependimento.
Um dos padres sugeriu minha sumária expulsão do seminário, mas os demais ponderaram que o bom dinheiro que recebem mensalmente do meu pai para me manterem aqui, seria uma perda irreparável, além de que isso poderia demonstrar aos demais seminaristas uma prova de fraqueza dos mestres, que não conseguem dobrar um reles seminarista desvirtuado. E enquanto discutiam e ponderavam sobre o que fazer comigo, sentei no chão para aliviar as dores do joelho que há uma hora estavam apoiando o peso do corpo. Feridas ardiam por todo lado.
Mas, logo se deram conta da minha presença e mandaram me vestir e sentar numa cadeira. Vestido, as feridas e as marcas das chibatadas desapareciam aos olhos do mundo.
Foi então que o monsenhor mandou chamar os seminaristas. Quando se acomodaram, olharam atentamente para minha figura minúscula, cercado por todos os professores e pelo monsenhor, me contorcendo um pouco com as dores, ficaram espantados com a situação inusitada, uma vez que todos esperavam que saísse depois da “investigação”, como era usual, gritando aos quatro cantos uma culpa e implorando algum castigo, o que não ocorrera. Monsenhor quando levantou as vistas, silenciou os murmurinhos que se espalhavam por todo sala. Altivo, falou:
 - Senhores, de hoje em diante, considerem tudo que esse seminarista disser como loucura, pois esse pobre cristão tem sérios problemas psicológicos e distúrbios insanáveis de pensamento. Uma cabeça alienada, eis o que tem esse pobre rapaz. Logo, nunca devem dar vazão a que exponha suas idéias, pois que sua perturbação própria, pode perturbar as boas idéias que aqui se cultiva de forma tão harmoniosa. De hoje em diante, ele não falará nas aulas, nem lerá seus trabalhos para todos, e deixará de servir à biblioteca, pois que, com certeza, foram os livros que desvirtuaram a cabeça do infeliz, e servirá na parte agrícola do seminário.
Um silêncio sepulcral ocorreu. Todos pensativos, entreolhando-se admirados com a sentença, com o diagnóstico e com a decisão, até mesmo alguns professores (principalmente o de história e o de filosofia) que pareciam triste com a perda do seu monitor.
Foi quando intempestivamente pedi a palavra.
- Monsenhor, peço meu direito de exercer minha opinião.
É óbvio, que se ódio e raiva matasse, já estaria morto e não poderia estar aqui relatando esses fatos da minha vida. O monsenhor enraivecido bradou:
 - Levem esse louco e insolente para a solitária e deixem-no trancafiado por uma semana.
Não foi uma semana fácil e agradável.

2 comentários:

  1. Vou fazer-lhe um pedido. Por favor coloque todas as notas do seu existir aqui no seu blog. Se for possível, coloque-as em sequência. Obrigada!

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  2. Pedido nulo. Suas notas estão aqui.

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