terça-feira, 31 de maio de 2011

Notas sobre o meu existir N° 12

Se os padres e os seminaristas esperavam algum gesto de medo, covardia ou mesmo arrependimento, equivocaram-se. Levantei de cabeça erguida antes que viessem me prender pelos braços como se fosse ter que ser arrastado ao cadafalso, receoso do castigo e da situação, como geralmente ocorria em situações semelhantes.  Comecei a andar, mesmo mancando, arrastando um pouco as pernas, e o corpo dolorido do flagelo fazendo andar com vagar, mas firme. Foi então que fingi um desmaio e caí sobre os livros na mesa. Nada poderia dar mais dramaticidade à cena do que essa minha atuação majestosa diante de uma platéia incrédula de crédulos. Confusão geral, gritaria, todos correndo para me socorrer. Nisso já havia escondido o livro Vida e Máximas de Diógenes, o cínico, debaixo da batina.
Foi então que bradei:
 - Deixem-me em paz! Foi só um momento de fraqueza diante da dor do flagelo que passei. Não preciso de ajuda!
Afastaram-se assustados. Levantei altivo, novamente com a cabeça erguida, passei pela minha mesa e peguei minha “bíblia”, e fui em direção ao meu local de castigo. No íntimo, carregava certo sentimento de alívio. Uma semana sem missa seria um presente. Verdade que passar a pão e água não é lá muito apropriado para a formação corporal de um adolescente, como era o meu caso. Naturalmente, como sempre, minha capa de bíblia portava internamente, dessa vez, a obra de Nietzsche, Para além do bem e do mal. E foi com esses dois livros e autores que acabei convivendo uma semana de forte efervescência de idéias e tomando a decisão definitiva que me fez ser o que sou agora: um homem comum, que não se destaca dos demais pela profissão ou pela posição social. 
O fato é que se ainda tinha certa relutância em aderir ao cinismo, tais dúvidas se dissiparam. Ora, mesmo tendo poucas horas de luz ao dia, uma vez que só entrava claridade das 10:00 da manhã às 4:00 da tarde, por uma minúscula janela perto do teto e sem que pudesse olhar por ela, li e reli as duas obras mais de duas vezes. E em cada leitura novas descobertas e profundas mudanças interiores. Definitivamente abandonaria uma cidadania nacional e seria um cidadão do mundo, cosmopolita, internacionalista, humanista. Abandonava qualquer sentimento de posse sobre coisas ou pessoas, e mesmo não podendo viver como Diógenes, conhecido como o Sócrates louco, nu ou semi-nu, morando num barril, plantando alfaces nas margens dos rios, ainda assim poderia aprender a vida natural preconizada pelos cínicos, uma vida que se afasta e critica a degeneração que a vida social causa nos homens, criando gostos, vontades e necessidades que aprisionam as pessoas a cumprirem funções sociais que as tornam medíocres, mesmo que ricas, famosas ou poderosas.
E com Nietzsche, superava definitivamente a velha dicotomia entre o bem e o mal, o certo e o errado, percebendo que é preciso transvalorar os valores humanos, que presos aos arcaísmos místicos, vêem tudo em preto e branco e perdem a multiplicidade dos matizes de cores de que é composta a vida. Não há um senhor a ser vencido, mas antes um escravo a querer ser liberto. Enfim, tornava-me além de um cínico, um sátiro, que andaria pelos campos, bosques e cidades a divagar sobre a vida, e ao invés de buscar a sabedoria, talvez, uma antiga ilusão, buscaria ser menos ignorante.
Por fim, mas não menos importante, afastar-me-ia (o máximo possível, o que nem sempre é possível) definitivamente do dinheiro, pelo menos do trabalho e dos carnês de prestação que ele acarreta. Da vida social só desejava a convivência humana, aquilo que se troca nas conversas e nos contatos humanos para além da vida profissional. Por mais tola que considere a vida e as crenças das pessoas, não deixo de admirar e respeitar a inteligência, a justiça, a verdade e a humanidade nos ditos e feitos de qualquer um, de uma alta autoridade ao homem comum, independente de suas crenças particulares. É que independente das crenças que ouço, vejo mais os gestos que realizam, e nestes deposito maior valor.
Sim, agora todos sabem como me tornei o que sou, um cínico, adepto da ironia e do escárnio como forma de despertar reflexões. Um sátiro que flauteia pelos bosques obscuros onde ocorre a convivência humana, a revelar o rebanho assustado que segue qualquer pastor, e que antes de procurar melhorar a si, procura o culpado para tudo de errado que não consegue fazer certo.
Bom, mas nem tudo foi festa. No terceiro dia descobri que o pinico não foi feito para comportar a carga de nossas descargas diárias por mais que esse tempo, por pouco que comamos ou bebamos. Quando fui informado que não aliviariam a carga do mesmo, muito menos forneceriam um novo recipiente, fui obrigado a tomar uma atitude radical, mesmo sendo contra meus princípios: esvaziei o conteúdo líquido pela porta. Com isso, não apenas peguei mais uma semana de cerceamento de liberdade, como ainda nem pude receber a visita dos meus pais que vieram me visitar, mas foram impedidos pelo monsenhor devido à minha situação de “punição educativa” (mal sabe ele como esses termos se contradizem), que só permitiria visita no mês seguinte, isso caso estivesse fora daquele lugar, o que ele não tinha certeza que ocorreria, pois acreditava que meu temperamento exigia um tratamento mais duro e constante, para não dizer permanente.
É claro, que depois de 3 semanas me libertaram daquele lugar, pois ninguém mais conseguia chegar perto com o cheiro de urina e fezes que reinava absoluto pelo lugar, afora a fedentina que se espalhava com o vento por todo mosteiro.  Na batalha com o monsenhor, venci devido a minha resistência aos odores fétidos, ajudado também pela futura visita de um padre fiscal do bispo para observar suas instituições de “ensino”: seria notório que a fedentina local chegaria às suas narinas, era só uma questão de capricho da direção dos ventos, e o monsenhor poderia ser acusado de crueldade. Como continuava a urinar pela vão da porta, além de pacientemente empurrar a merda por debaixo da mesma, para o corredor (o que alguém trancafiado num cubículo tem para fazer o dia inteiro, senão ficar pensando em merda?) com alguns gravetos lá deixados, mesmo porque para mim ficava mais aliviado por para fora essas substâncias, que as reter junto comigo num local pouco ventilado, assim foi forçoso soltarem-me. Por fim, vitorioso e triunfante, tiraram-me, mas, sofri uma breve derrota: jogaram-me debaixo da água fria e fui obrigado a esfregar com força todo o meu corpo. Entretanto, confesso, foi uma das poucas vezes que apreciei um banho mais profundo. Verdade que foi o último banho com sabão, pois esse seria um dos luxos sociais a serem abolidos da minha vida.
De fato, entrou um jovem ainda imaturo no cadafalso, mas saiu Outro Alguém.

Um comentário:

  1. Tem situações que é melhor se fingir de morto mesmo OASS..
    Quem já enfrentou situações dramáticas como essa sai de qualquer outra situação embaraçosa, mesmo que esteja a ponto de "dar merda"...rsrsrs
    Esse Outro Alguém com certeza deve ser hoje um garoto bem mais experto

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