terça-feira, 6 de setembro de 2011

Notas sobre uma filosofia intestina - o pesado fardo da liberdade e da racionalidade

Foram os gregos que colocaram a questão da liberdade e da racionalidade no âmbito das discussões do pensamento humano que vem ocorrendo através dos séculos, que perceberam a peculiaridade humana na capacidade de livremente instituir para si próprio as normas de vida, e que as mesmas são cabíveis de aperfeiçoamento através do aprimoramento do conhecimento e das práticas políticas através da racionalidade. Contrariamente aos demais seres vivos que são obrigados a seguir as leis naturais, sem escolhas, sem escapar ao seu destino natural, o ser humano cria artifícios e normas de vida para si próprio, cria suas necessidades, inventa sua vida e suas escolhas (muito além das escolhas que a natureza oferece a todos os animais), inventa seu destino de glória ou de fiasco, sua organização familiar e social, e institui a vida política que cria uma segunda natureza, onde impera o discurso e o diálogo para a comunhão dos interesses particulares em torno do interesse comum.
Desde então o homem é consciente de estar condenado a ter que escolher tudo em sua vida, a tomar decisões e ser julgado por elas; é pensado como um ser livre e racional, que engendra a realidade que convive, para o seu bem ou para o seu mal, pois tanto a liberdade como a racionalidade depende do exercício particular das pessoas para que ocorra plenamente, e para que se dirija para uma direção boa e justa, ou em sentido contrário. Todos têm a capacidade de exercê-las, pois que dotados igualmente da mesma natureza biológica e das mesmas potencialidades, mas para exercê-las na sua plenitude é preciso educação e aquisição de conhecimentos e virtudes, assim como esforço pessoal, sendo um artifício que se adquire pela convivência e só com ela pode ser exercida e desenvolvida. Logo, com a consciência da liberdade e da racionalidade veio também o medo do abuso dessas prerrogativas, pois assim como se pode engendrar o bom, o verdadeiro, o certo e o justo, se pode engendrar seus opostos, o que sempre depende do grau de consciência do deliberante da ação.
Se o homem é dotado de liberdade, isso significa que, para além das contingências da fortuna ou dos desejos dos deuses e da natureza, são os homens os responsáveis pelo seu destino enquanto povo e enquanto pessoa; são livres para atingir a sua glória e a sua eternidade ou a sua desgraça e o seu fim através de suas escolhas pessoais ou coletivas. Não estão presos a um destino natural, porque qualquer homem ou povo pode alterar a natureza ou a situação para seu conforto e satisfação. Sendo assim, é a única criatura a desfrutar da liberdade e da racionalidade, que significa a responsabilidade de instituir para si mesmo seus costumes e a forma de convivência entre os homens, assim como princípios para suas ações. Princípios que impomos a nós mesmos como necessários em si, uma regra imperativa para nós, com objetivo de restrição de nossos desejos egoístas para acolher um agir ético e político, visando não apenas ao bem próprio, mas ao bem comum, ou pelo menos não se contrapor a ele ou aos demais interesses sociais. O princípio se torna um imperativo que ordena a nossa subjetividade individual se conformar ao princípio da lei convencionada.
Todavia, como é sabido, por não sermos providos de algum tipo de santidade, na qual o querer coincide já por si com o dever instituído pela racionalidade, mas seres providos de um caráter e inclinações, ao mesmo tempo, pertencente ao mundo sensível e inteligível, torna-se necessário aprender e apreender o conceito de dever, que é a necessidade de uma ação por respeito ao princípio. Caso não ocorra uma formação apropriada, a tendência é se deixar levar pelo imediatismo dos desejos, pela utilidade, pelo pragmatismo, pelo menor esforço. O fato é que, dotado de um arbítrio, o homem age conforme lhe aprouver e sua sabedoria possibilitar, o que permite fazer uso de seu motivo para a ação, tanto de desejos egoístas como também de princípios éticos produzidos pela razão; a deliberação por um ou outro dependerá da visão alargada ou estreita do observador ou receptor dos fenômenos cotidianos, ou mesmo das circunstâncias. A razão pode promover o “melhor agir”, porque, com ela, o agente não visa apenas, como fim, à obtenção de lucrar ou beneficiar, mas é capaz de indicar um curso de ação superior para si e para todos. Mas, a opção “racional” nem sempre parece apropriada para muitos, pois ainda que sejam capazes de julgar, nem sempre se realiza bons julgamentos. Frisemos que o homem é um ser autônomo, mas que só se submete a uma lei, quando tem em si, antes dessa submissão, um interesse nela capaz de estimulá-lo ou constrangê-lo a seguir ou a não burlar as normas. Essa capacidade de restringir suas inclinações em prol da concretização do agir ético, só ocorre quando o sujeito reconhece a lei como algo bom a ser acatado e resolve voluntariamente se adequar à mesma, adotando-a como sua própria autolegislação. Esta lei é posta como obrigação prática estendível a todos os homens, devendo eles se motivar para cumpri-la apenas por respeito, isto é, consciência dos deveres e direitos, que são justificados e fundamentados na sua razão. E tal objetivo só é possível após um processo educativo pela sociedade nos seus indivíduos, pois que não se adquiri tal disposição, compreensão ou percepção por natureza.
O fato é que desde os antigos gregos se compartilha a noção de uma “natureza humana”, mesmo que recheada de inclinações e temperamentos, elástica o bastante para permitir a ação educacional, e de que a articulação dos hábitos e costumes educados são essenciais para o bom desempenho político, para o exercício da liberdade e da racionalidade. É preciso ter ao lado da habilidade profissional que lhe garanta a independência econômica, alguma virtude cívica genérica, pela qual se põe em relação de cooperação e inteligência com os outros, no espaço vital da cidade. Ora, é com a política que aparece a idéia de formação cultural, pois induz ao processo de educação para superar o imediatismo dos interesses particulares, dominar as paixões, a ganância, e até mesmo as necessidades, e fazer prevalecer uma razão bem intencionada, certa abnegação, assim como o raciocínio de longo prazo. Não que isso sempre ocorra ou possa assim ocorrer, mas há esse ideal como horizonte quando se tenta instituir a formação humana para a vida política.
Acrescente-se o fato de que a racionalidade transmite as sabedorias e as artes humanas entre as gerações e entre contemporâneos, produzindo maiores e melhores conhecimentos e artes, permitindo o convívio entre os homens de forma falada, entre pessoas que, através da discussão dos problemas, podem controlar a si próprio e aos demais, assim como ser controlado por todos, sem ser pela violência, força ou mero adestramento, voluntariamente, pela persuasão. Logo, a liberdade e a racionalidade permitem ao homem autoinstituir a vida política, instituir o público, criar leis às quais pode se adequar e transformar. Portanto, o que também faz do homem um ser diferente dos demais animais é a fala, que nivela o mundo num entendimento comum, que permite o convívio social de tal modo a potencializar a todos em torno de objetivos comuns e desejos compartilhados, e trocar bens e idéias para a múltipla satisfação. É a fala que permite o exercício da liberdade e da racionalidade, onde se efetivam essas atividades humanas.
Essa capacidade de organização política (e não meramente social, pois até insetos vivem em sociedades), significa que, para além da vida privada da família, da casa e do clã, da subsistência, do aglomerado de seres da mesma espécie, o homem adquire uma segunda vida, uma vida pública que escapa daquilo que é meramente útil e necessário à sobrevivência biológica. Isso faz com que o cidadão pertença a duas ordens de existência: a sua vida entre aquilo que lhe é próprio e particular e a sua vida entre aquilo que é em comum e público. A vida política é mais que uma mera vida social, é viver num local onde se desfaz do tempo natural das estações ou do ciclo selvagem da vida nômade, da vivência em família, bando, rebanho ou multidão, se troca as ligações de sangue pelas ligações contratuais decorrentes da confiança mútua entre pessoas iguais em cidadania, e se institui uma vida pública, na qual ocorre a ação e o discurso dos seres humanos, pois viver politicamente também significa que tudo é decidido mediante palavras e persuasão, e não através de força e violência. A instituição do poder político representa que ao invés de forçar alguém mediante violência ou ordem, características da vida selvagem e natural, se impõe a fala entre iguais, que persuade pelos argumentos, pelo poder que vem da autoridade do enunciado e não pela força que vem do autoritarismo do agente. Somente na vida politizada é que o homem pode realizar a capacidade inscrita em sua essência auto-instituída, um animal que possui a capacidade de falar de maneira sensata e de refletir sobre seus atos, de se potencializar como pessoa e cidadão. Na vida natural impera a força física e a astúcia; na vida urbana impera o poder político e a racionalidade, um produto original da criatividade advinda da liberdade humana que não apenas se submete ao tempo e ao espaço, ou às meras necessidades biológicas da sobrevivência, mas que impõe aos mesmos sua vontade soberana de autodeterminação.
Instituir um Estado com poder político significa dividir tarefas, compartilhar deveres e obrigações, conciliar esforços, e dedicar parte do tempo particular às necessidades da vida em comum, ganhando assim direitos e potencialidades individuais pela força coletiva; tudo isso de forma dialogada, com a concordância coletiva e voluntária, tendo como ordenador não apenas um governo externo, mas também algum tipo de autogoverno. Isso pressupõe especialização de tarefas e funções, a percepção da responsabilidade individual e coletiva para a concretização do bem comum, a coadunação dos homens e seus trabalhos, uma consciência cívica e ética para criar confiança mútua obtida através da educação. O caráter específico da ação política está no fato que exige o concurso de outras pessoas, obrigando o seu promotor a pôr em jogo uma técnica de agrupamento de colaborações, onde a ação não é simplesmente individual e material, mas pressupõe um concurso de vontades voluntárias para efetivação de um ato comum. A política começa a existir quando se renuncia ao uso da força para impor as próprias idéias, e se admite a divergência de idéias ou ideais. Há política quando se abre mão da violência como meio de sujeitar as vontades sociais e se utiliza a fala para negociar os interesses. Existe poder político quando a ação de determinados entes sociais exerce certa força na sociedade, não sob ameaça, chantagem, terror, etc., mas quando a política é exercida sob uma alta probabilidade de que uma ordem seja seguida por um dado grupo de pessoas, quiçá todos. E a política só se concretiza quando o poder público, por meio da invenção do direito e da lei (a instituição de tribunais) e da criação de instituições públicas de deliberação e decisão (as assembléias), foram separados das autoridades tradicionais: a do poder privado ou econômico do chefe de família, a do chefe militar e a do chefe religioso.
Nas Repúblicas contemporâneas, um partido, um sindicato, um movimento social, uma ONG, algumas minorias, uma pessoa qualquer tem peso político, na medida em que tem a força para mobilizar certo número de eleitores ou de pessoas para um projeto em comum. Salientemos que força não significa a posse de meios violentos de coerção, mas meios discursivos que permitem influir no comportamento de outra pessoa.
Sem dúvida que os princípios que movem as pessoas para a vida política, que legitima sua existência, são melhores que sua efetividade prática. Não foram poucas as tragédias políticas que assistimos no decorrer da história. Mesmo hoje, com costumes mais amenizados e menos brutos que outrora, não são poucas as barbáries que se vê; se podemos elencar avanços morais (por exemplo, o fim da escravidão) na humanidade, podemos igualmente apontar fortes retrocessos como os genocídios contemporâneos, desde a segunda guerra mundial, decorrentes do uso de armas e técnicas de destruição em massa. O fato é que a mesma liberdade e racionalidade que pode mover para procedimentos éticos, pode levar também para a violência, e assim como age a racionalidade sobre as ações e até mesmo sobre os desejos, podem agir outras forças que nos constituem, que quando muito podem ser amenizadas pela racionalidade, ela mesma suscetível de ser afetada por desejos oriundos de um querer difuso e indefinido. Ocorre que a educação ainda não fornece para todos os instrumentos para o bom exercício da cidadania em boa parte do mundo.
A vontade de agir é condição natural de todo ser humano, mas o bom agir é aquele que o leva à ação ética e o torna livre. A razão seria a faculdade adequada para a indicação de princípios que visam a nos orientar em nosso agir, indicando-nos um curso de ação digno de ser universalizável. Porém, o homem ao mesmo tempo em que participa da racionalidade é também afetado por inclinações sensíveis, que podem influir nas suas percepções, no seu pensar, mas principalmente no seu agir, dependendo da sua formação. Eis porque muitas vezes escolhe mal, age equivocadamente, percebe de forma errada o agir alheio e o próprio.
Como a autonomia é a faculdade de dar início, por si mesma, a uma série de atos proporcionando a realização de eventos no mundo, podem todos promover seu aperfeiçoamento, e consequentemente o aperfeiçoamento da convivência. Mas, para tanto são necessários esforços extraordinários que poucos estão dispostos a conceder, devido à visão estreita em que se formam os homens na atualidade, para serem antes contribuintes que cidadãos, mais consumidores que pessoas com opinião, para terem funções sociais antes que posições políticas, para pensarem em si e desconsiderarem a espécie. Naturalmente, a grande maioria não almeja mais que a liberdade de escolha da roupa ou do restaurante, ou ainda da profissão ou da pessoa com quem se casar, do local de moradia, e que saiba resolver seus problemas pessoais com a racionalidade possível, ou seja, com menor esforço emocional ou intelectual: satisfazem-se por não serem desonestos, não matarem ou roubarem; não buscam tanto a justiça, mas antes não cometerem injustiças, sem questionarem o mérito da justiça estabelecida.  Uma pequena parte de homens cospe para a justiça, liquida com a verdade e pouco se importa com o certo, estes não conhecem a liberdade e tem poucos recursos da racionalidade para se libertarem da estreiteza de visão e da limitação da percepção da vida humana: escravizam-se por coisas ou pelo poder. Só poucos almejam a liberdade e a racionalidade sabendo das responsabilidades que acarretam cada uma de nossas escolhas, procurando não apenas um acúmulo, seja da liberdade ou da racionalidade, pois que não se concretizam em coisas materiais que se possa guardar, mas apenas no seu exercício virtuoso, na atividade comum do debate de nossas idéias sobre o certo, o justo e o verdadeiro, pois como todo artifício humano é cabível de aperfeiçoamento, e realiza-se coletivamente. O que não quer dizer que não possamos nos matar ou sermos mortos em decorrência de ações impetuosas do exercício de liberdade e racionalidade de pessoas que se acham acima dos demais, e podem julgar e condenar a todos. Esse tipo de arrogância ainda ocorre, pois a formação humana continua deficiente em muitos aspectos, está desigualmente distribuída pelas diversas partes do mundo, sendo que muitos recebem apenas uma visão bastante parcial da totalidade da existência humana, sem uma formação humanística.
Mas, por sermos dotados de liberdade e racionalidade, qualquer um pode agir politicamente para modificar o destino próprio e de todos, para melhor ou para pior. O problema é: quem quer agir? Quem quer agir, sabe o que fazer? Grande parte espera passiva as decisões governamentais, ou coletivas, ou ainda de autoridades. De minha parte, acredito que sendo bom com aqueles com quem tenho contato e não prejudicando quem não conheço, contribuo para a melhora do mundo. E politicamente atuo pela difusão do republicanismo, um regime de leis, mais do que de homens, onde se elege princípios antes do que políticos. Ainda que a liberdade e racionalidade lancem certo ar de imprevisibilidade ao futuro, devido aos usos e abusos dessas atividades, não deixo de fazer o que considero certo, justo e verdadeiro, mesmo sem saber se serão algum dia efetivados. Faço porque minha consciência ordena e não apenas porque espero resultados, ainda que os espere.

2 comentários:

  1. Ave Maria!
    Que texto comprido.
    Vai ser minha leitura para o final de semana!

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  2. Eu, como muitos, cuido em fazer o bem aos que estão ao meu redor; aos que fazem parte do meu cotidiano. E evito prejudicar qualquer pessoa, através de minhas escolhas, que como foi dito no texto, é preciso, resignação.

    Estou impressionada com a evolução dos seus textos.
    Tenho apresentado-os em minha página do face, e as pessoas estão elogiando muito e agradecendo. Comentários muito lindos e interessantes. Muito bacana, ler o que cada um sentiu ao ler: Tons Desbotados.
    Uma das pessoas fez o seguinte comentário do seu texto disse: "Este sim deveria ter nome, sobrenome e tudo o mais que o identificasse como uma Pessoa, Indivíduo e Ser pensante!!!! Um ótimo texto Mari. Obrigada. Beijos."

    Feliz semana!

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