Dentre as
inúmeras incoerências humanas, a justiça merece destaque pelas injustiças que
vem promovendo nos ingênuos humanos. Contrariamente ao que afirmam a maioria
dos pensadores há milênios, não é porque temos o sentimento de justiça, ou a
desejamos, ou mesmo por sermos justo, que se criou a justiça, ou por causa de
bons sentimentos, ou porque os bons pretendem limitara o poder dos maus, mas
porque se têm medo se sofrer injustiças. Não são para as virtudes que se deve
olhar para entender a origem da justiça, mas essencialmente para a sua falta,
além dos vícios.
Foi graças às
pessoas más que se criaram as leis, foi para conter a maldade ou a ganância que
elas foram inventadas. E não necessariamente foram as pessoas boas que as
fizeram, pois mesmo os maus não querem sofrer injustiças e têm interesse que
haja justiça, apenas se acham no direito de eventualmente não praticá-la.
Enfim, a justiça foi inventada porque as pessoas são injustas. Uma justiça de
homens maus nunca pode dar em boa coisa.
Fossem os
homens bons, honestos, não violentos e justos, então, a lei seria
desnecessária. E a razão porque os homens não são assim é simples, basta por a
mão na consciência e saberá quantas injustiças se escondem em nossos desejos.
Ora, o certo todos sabem, tanto que só realizam as coisas erradas escondidos,
clandestinamente. E assim, toda grande injustiça social decorre apenas das
pequenas injustiças individuais, e jamais se consertará qualquer coisa no
mundo, sem antes de consertar a si.
O fato é
que, por simples e fácil saber o que é certo, não acarreta que seja fácil e
simples praticá-lo, pois ainda que seja algo desejável de receber, poucas vezes
parece conveniente realizá-lo. Por exemplo, ainda que o certo seja dizer o que
se pensa, por vezes é preferível calar, ou então falar diferentemente do que se
pensa. Assim, por desconfiança mútua, por nos acharmos incapazes de ter boa
vontade de praticar o certo, e que o interesse próprio sempre pode prevalecer
sobre o interesse comum, que criamos leis coercitivas para obrigar a todos, ou
pelos menos a maior parte, não a fazer o certo, mas a cumprir a lei; não é das
pessoas propriamente que se espera a justiça, mas do cumprimento da lei pelas
pessoas. E os que não se contém e descumpre a lei, punição.
Afinal, a
justiça é apenas o primitivo sentimento de vingança disfarçado, pois quando se
sofre alguma injúria, deseja-se ao injusto o pior dos castigos. Eis porque
muitos acham as leis brandas, já que o desejo majoritário é que o injusto
morra. Não se deseja discutir o que é justo ou apropriado para aqueles que mais
seguem suas inclinações do que sua razão, e não cumprem o dever da lei, querem
apenas punir a pessoa por isso. Entretanto, o mal sofrido pode ter origem
diversa, da ignorância, do medo, do equívoco, da insensibilidade e até mesmo da
maldade; a punição, a vingança, se for eficaz, o que não acredito, só se aplica
à maldade. Punir a ignorância é crueldade, visto que a ignorância já é o pior
castigo que alguém pode sofrer. Punir o medo, o aumenta, não o elimina. Punir o
equívoco é inútil, pois ninguém escolhe se equivocar, é algo involuntário que
ocorre a todos. Punir a insensibilidade apenas aumenta a mesma. Já a maldade
pode justificar a punição e a vingança, mas dificilmente a legitima.
Na realidade
toda injustiça começa ao se querer estabelecer a justiça: via de regra, os mais
fortes imporão aos mais fracos seus critérios, seus princípios, mas
principalmente sua vontade. E é do exercício da força de uns sobre os outros,
que surge a tola noção que se pode estabelecer uma justiça entre fortes e fracos,
ou que haja um exercício legítimo da força, quando a força, em si, é violência,
ou seja, injustiça. E como, ainda que fraco, um homem é um homem, é capaz de
subjugar a força, ou enganá-la, os conflitos dos homens se estendem pelos
séculos.
Desconsiderando
a hipótese de alguma má índole de origem biológica, suponho que as mesmas se
construam culturalmente, e assim como viemos formando índoles boas e más no
decorrer dos séculos, o fato é que fundamentalmente se plasmam índoles
ignorantes, fracamente ilustradas, deficientemente educadas, aptas apenas para
captar tudo que o desejo lhe apresenta e não olha para nada. Construindo
pessoas justas haverá justiça, do contrário, ainda que não se plasme
necessariamente pessoas injustas, as mesmas agindo apenas atrás dos seus
interesses, faz de quase todos pessoas interesseiras, que é o que mais promove
as infindáveis injustiças que se sofre e que se pratica cotidianamente, das
menores às maiores ações promovidas.
Mas o justo
não pode ser estabelecido por leis; ele se estabelece em cada momento e em cada
circunstância de forma diversa, eis porque as leis fedem ao querer estabelecer
o certo para todos: cria o errado para muitos. Desse errado, logo se passa a
ser considerado ilegítimo, para depois ser injusto, e por fim punido. De um
lado a lei pressupõe uma pessoa que a entenda e que a cumpra, mas desconfiando do
entendimento e da obediência de todos, estabelece também punição para os
desobedientes. Por outro lado, a lei que estabelecem direitos e deveres
pressupõe que todos desejam os mesmos, ou que é necessário a todos. Por fim, a
lei pressupõe que os homens são incapazes de fazer o certo e o justo sem a
coerção da espada que lhe acompanha. As três pressuposições estão equivocadas.
Para
começar, considero a premiação mais eficaz para induzir alguém ao certo do que
a punição. Deve-se contar antes com o interesse da pessoa, do que com a sua boa
vontade, pois ainda que a mesma possa ser desejada, não deve ser esperada; o
que move a todos são os interesses, e mesmo a boa vontade, carrega consigo
algum interesse. Além disso, se pressupor que as pessoas entendam e cumpram uma
norma, a mesma deixa de ser norma: o que falta é entender a norma, e não punir
aqueles que não entenderam, visto que qualquer pessoa normal, se entende o
espírito da lei, a necessidade e a justiça da mesma, raramente a desobedecerá.
Por fim, direitos e deveres me parecem um arcaísmo feudal, de senhor e escravo.
Um homem livre deve seguir suas próprias leis, não se submeter às leis externas
e criar leis comuns.
Como obter
pessoas justas antes de construir tribunais de justiça é uma questão elementar,
é só usar a educação para ao invés de deformar os homens para serem tão somente
profissionais e consumidores, e transformá-la em formadora de cidadãos da
humanidade e habitantes do planeta. É óbvio que não se pode ser ingênuo que
isso impedirá a ocorrência de qualquer ato injusto. Há pessoas patologicamente
más e injustas que educação alguma conserta. Pessoas mesmo bem educadas podem
se equivocar, podem ter ignorâncias para algumas circunstâncias ou em alguns momentos.
As pessoas também podem se iludir e se enganar. A grande diferença entre uma
pessoa formada para ser justa, daquela deformada para reivindicar justiça dos
outros, é que a primeira tem a possibilidade de perceber o erro e agir para o
seu acerto, se sente parte do processo da realização da justiça, além de
recepcionar as ações alheias não como injúrias a serem punidas, mas como
ignorância a ser remediada. Enquanto a segunda apenas sabe alimentar mágoas
sobre supostas injúrias recebidas, e requer a força para obter alguma
compensação.
Para mim a
justiça de retribuir o que se recebe só é válida quando se retribui o bem,
nunca o mal. O mal jamais se retribui, pois o mesmo só se anula no exercício do
bem, e jamais com a eliminação de pessoas supostamente más. Quanto mais as
pessoas são boas, menos pode o mal agir, e quanto mais as pessoas são mal
formadas, mais o mal pode reinar, principalmente de forma involuntária.
Devemos ter
em conta que a justiça tem sido sempre uma coisa que interessa aos fracos, pois
como os fortes não se submetem, raramente sofrem injustiças. Mas, podem
praticá-la, não por alguma maldade intrínseca, porém ao seguirem sua vontade
institui seu interesse aos fracos. Há os que condenam a existência dos fortes,
entretanto, se for para condenar alguma coisa, condenem-se os fracos, pois a
força só pode ser exercida sobre a fraqueza, enquanto a força contra outra
força se equilibram. O que faz pender a bandeja da justiça para os fortes, não
é apenas a ação dos fortes, mas também a submissão dos fracos. E os fracos ao
invés de buscarem ser fortes, querem limitar o exercício da força, que faz que
a força extrapole os muros de contenção aqui e ali; nada que é forte tende a
ficar inerte. O fraco tem medo de tudo e tudo quer proibir, limitar, controlar,
submeter, procurando uma segurança inexistente, como se pudesse conter o
desenvolvimento humano, a corrente dos movimentos históricos, os pulos do
conhecimento e da ousadia de agir de qualquer pessoa forte, que tem coragem
para saber e não tem preguiça para empreender. E por mais que se faça, o forte
fará a sua justiça e não se submeterá à justiça dos fracos. Não é tanto que a
justiça do forte seja tirânica, mas antes não se submetendo a nenhuma
injustiça, só realiza aquilo que acha certo, e que pode ser considerado errado
pelos fracos.
Todavia, só
há igualdade quando nos fazemos iguais, não quando queremos que as pessoas
sejam homogeneizadas pelas leis. Só há liberdade quando se exerce a liberdade;
ela não é um direito, é uma opção pessoal que não se dá ou se tira. Assim como só
há justiça quando se busca ser justo, mesmo que nem sempre se consiga. Leis externas
aos homens, estabelecidas em constituições, ainda que possa ser considerada uma
conquista da civilidade, é antes um atestado de incompetência educativa, para
ensinar a agirem de forma ponderada, com leis próprias quando se trata de sua
vida e seus interesses, e segundo leis de respeito mútuo, quando relacionada
aos demais.
Mas, enfim, pode a humanidade algum dia ser
justa? Ou talvez seja melhor perguntar, pode a humanidade deixar de ser
injusta? A essa questão cada um deve dar a sua resposta. De minha parte posso
garantir, antes de ser justo, procuro não ser injusto, pois achar que se pode
ser justo sempre, impede de ver as injustiças que se comete involuntariamente,
e procurando não ser injusto, se não sou justo, ao menos cometo menos
injustiças, ou tenho essa esperança.... ou ilusão.....
Nenhum comentário:
Postar um comentário