domingo, 19 de junho de 2011

Notas sobre uma filosofia intestina – Do desapego ao despojamento

Defendo o desapego com as coisas e com as instituições desde a adolescência, acreditando que as mesmas devem deixar de ser algo para se ter, e se tornem algo para só usar, caso possível e até onde seja possível, sem sofrer por não ter, pois se pensarmos bem, poucas coisas são realmente necessárias para viver: alguma água, algum alimento, algum tecido para agasalhar o corpo do frio, um canto sossegado para se abrigar das intempéries do clima e da sociedade e algum contato humano. Tudo mais são necessidades que a humanidade foi inventando e que foram naturalizadas, e que assim como se apegou, pode desapegar-se. Sentimentos, pensamentos, desejos e coisas, todos podem escolher dentro de uma rica oferta de possibilidades que frutificam pela cultura e pela sociedade, ou pode criar os próprios, ou criar outras coisas, e pode desapegar-se de todos e de tudo. Pode escolher casar ou não, pode escolher casar muitas vezes; pode escolher que o tecido além de esquentar o corpo, lhe enfeite; pode escolher passar a vida trabalhando para ter muitas coisas e pode escolher pouco ou mesmo nada ter. Nada está interdito para aqueles que constroem seu destino e tudo é possível, o que significa que pode tanto ocorrer o bem como o mal, ainda que o que mais ocorra sejam equívocos.
Todavia, o apego só é importante com as pessoas, das quais não se pode desapegar-se, sob pena de perder a humanidade. De tudo mais deve desapegar-se, buscando uma vida mais simples, sem muitas coisas a vigiar e livre para os encontros com amigos. O apegar-se às coisas, aos sentimentos, pensamentos e desejos se deve ao fenômeno de serem educados para a posse, que finda perpassando todas as ações e sensações humanas.
Eis porque muitos não acreditam que proponha o desapego de sentimentos caros à maioria, como o amor, um sentimento moral, que se caracteriza pelo fato de que a pessoa que o compartilhe, adquire o monopólio da posse do outro e pelo outro é monopolizado. E, pior ainda, em não poucas vezes, pode resultar em muito ódio, seu irmão gêmeo. Além de algo confuso, visto que as pessoas que amam seu par, não poucas vezes dizem também que amam seus filhos, que amam os pais, que amam os avós, que amam o cachorro, a planta, a cidade, o filme, o lanche e tantas outras coisas que se observa associado ao ambíguo amor, muitas vezes, por amor, fazem coisas cruéis, pois ele jamais dá boas medidas, na medida em que torna a todos parciais, ao preferir alguém em detrimento dos demais. Fundamentalmente, o amor não é nem democrático, muito menos republicano, vive num mundo privado, exclusivista, tornando os demais em desiguais e excluídos, e os envolvidos deixam de ser pessoas públicas e tornam-se um casal, uma entidade tentando criar uma identidade comum ou se matando para isso. Desapegar-se dos sentimentos morais é uma das tarefas que essa filosofia intestina, que aqui está sendo exposta, pretende realizar.
No meu caso, apenas o desapego da adolescência não me satisfez, tive que avançar até ao despojamento das coisas, dos sentimentos, desejos, pensamentos e muitas instituições, como família ou nação. O despojamento veio com o cinismo, já no começo da maturidade. Sei da radicalidade dessa proposta, pois se dependesse de mim ninguém teria nada, o que impediria ou limitaria muito a vida econômica, porém, por outro lado, praticamente acabaria a disputa humana pelas ninharias que produz, e, talvez, atingíssemos a paz. Ficar sem trabalho só é um problema quando o mundo é regido pelo dinheiro e acreditam que precisa comprar tudo que necessita para a sua sobrevivência. Com certeza, não é o meu caso, que raramente tenho dinheiro nas mãos, e ainda assim sobrevivo bem e sem trabalhar.
O fato é que, com o meu desapego associado ao meu despojamento, eu que nada procuro e pouco ambiciono, ocorre das coisas chegarem até mim, sem esforço, apenas passeando pelas casas de amigos. Caem na minha mão boiando nas ondas da moda e seus descartes de roupas, eletrodomésticos, móveis e tantas outras coisas que se troca. Primo por ter mais do que preciso através da reposição de algo novo de alguém, que precisando abrir espaço no armário, na casa ou por não querer mais o antigo, descarta em minhas mãos. Aquela calça antiga, aquela meia que não gostou, o liquidificador antigo, aquilo que para muitos para nada serviria, serve para mim. Infelizmente, creio que a única coisa realmente descartável na realidade contemporânea são as pessoas, tudo mais se recicla. Mas, assim como não descarto as coisas, não descarto as pessoas, eis o que me faz ter uma rede de amigos. E ainda que goste mais das pessoas, não nego que as coisas também têm seu encanto. Logo, sobras, restos e raspas me interessam! Detesto desperdício. Tem tanto trabalho humano sendo jogado fora em cada coisa que se descarta. Não sei se por certa afinidade de alma, tenho mais pena do lixo (abandonado ou jogado para todo lado) do que de muitas pessoas que conheço, que são verdadeiramente um lixo.
Naturalmente, tudo serve para a minha sobrevivência, pois que me despojei de ter bens de valor e optei por ter bens de uso tão somente. Aliás, pelos meus padrões, tenho muito mais que necessitaria para sobreviver, reflexo dessa época farta. Eis um motivo porque é fácil viver sem trabalhar, não faço carnês de prestação para satisfazer algum desejo tirânico de ter coisas! Não ambiciono senão o dia de amanhã, que sei que um dia não ocorrerá. Das coisas, poucas são as que desejo. Dos sentimentos e pensamentos, poucos são preservados incólumes por muito tempo, pois assim como os conhecimentos mudam, mudam também as emoções que nos causam pensamentos e sentimentos. O desapego é uma prova de maturidade emocional e intelectual, mostrando uma independência das coisas e das pessoas, das instituições que dão um sentimento forte de pertencimento, além de um sinal de autonomia moral e liberdade política, e a sabedoria de perceber que o importante na vida está no contato humano. Já o despojamento é sinal de ousadia filosófica e uma prática política que visa à transformação do mundo, dos negócios para os ócios.
Se não posso mudar o mundo, nem posso coagir aos demais para aquilo que considero acertado, não estou impedido de lutar pelo que considero, senão certo, menos errado. Que importância pode ter não ser levado a sério, num universo de tão poucas pessoas sérias? Não conto com a melhora do mundo, conto apenas em enumerá-las para que os mais próximos possam contemplar a riqueza que é nada ou pouco ter. E percebam que uma vida com pouco trabalho árduo é superior a uma vida dedicada aos aumentos salariais ou dos lucros, e o conseqüente trabalho exaustivo e diário que essas coisas exigem.

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