segunda-feira, 13 de junho de 2011

Notas sobre o meu existir N° 13

Muitos no meu lugar pensariam em vingança, que chamariam de justiça, em denunciar todos para as autoridades e buscar alguma punição. Não digo que não pensei, mas dei-me conta que, o que me distinguia da igreja, era achar que mesmo o mal deve ser retribuído com o bem. Que o erro vem mais da arrogância, que decorre da ignorância, do que de algum tipo de maldade intrínseca. Também não tenho frustrações, nem ao menos rancor. Não que seja capaz de perdoar ou que não me lamente pela vida perdida, ou que não amaldiçoe os castigos sofridos, enfim, sou um homem, tenho fígado e estômago, além dos intestinos, de onde acredito brotarem minhas idéias (hipótese absolutamente revolucionária e nunca aceita como uma tese pela academia). Simplesmente nunca levei a sério a vida, pois a única coisa séria nesse mundo é a falta de seriedade das pessoas, não excluindo a mim mesmo. O fato é que nada procurava ou ambicionava, e se uma vontade me fosse possível ter, era ser esquecido, mas isso era impossível quando alguns dos meus superiores me desejavam alçar a fantasma da biblioteca.
Alguns seminaristas vieram me confidenciar que iam denunciar, na primeira oportunidade, quando de lá saíssem para visitar aos familiares, as coisas ultrajantes e repugnantes que comigo fizeram. Logo fiz entender que não pretendia, nem nunca pretendi me vingar dos meus algozes. Que pouco valor via em se matar o tirano e que o certo é acabar com a vontade de se deixar tiranizar, e que a indiferença era a melhor arma para acabar com a tirania. Além disso, destituído que fui da capacidade de amar, consequentemente fiquei incapacitado de praticar seu irmão gêmeo, o ódio, portanto, não pretendia combater o mal com o mal, mas sendo bom, não querendo a mesma coisa que eles. Verdade que ser bom é relativo, o máximo que consigo afirmar, é que é não fazer ou desejar mau nem aos ruins.
Perguntavam os seminaristas, por que das punições cristãs, e ainda mais físicas? Já escrevi duas teses a respeito, mas não foram aprovadas. Afirmei na época apenas que, talvez, pela verdade elementar que enunciava aos quatro ventos: a ignorância! De minha parte, tão somente defendi um ponto de vista cristão: a morte não é um mal para um cristão e nenhum cristão deve senti-la assim, nem desejar ou lutar pela punição de alguém pela sua ocorrência. Não disse que é certo matar, disse apenas que não é ruim morrer. Outra coisa é se levo a sério isso ou qualquer outra coisa cristã.
Por incrível que possa parecer, essa minha resposta fez crescer ainda mais certa fama que comecei adquirir ainda preso e que desconhecia até então. De fato, minha hipótese teológica foi aceita por muitos seminaristas e comecei a ser visto como uma espécie de profeta. Além disso, quando foram realizar a queima dos meus manuscritos retirados do claustro, o aluno que ajudava o monsenhor acabou surrupiando e salvando um deles, que acabou sendo lido clandestinamente por todos. O título pouco digestível aos estômagos mais sensíveis era: “Sobre o uso dos excrementos e do escarro na magia natural e negra”.  E todos acreditavam que tinha usado a magia descrita na seção “De como usar as fezes para obter a piedade ou favores do inimigo”. De pouco valeram minhas negativas, afirmando que o texto não passava de uma compilação dos textos de Paracelso e do Grande Alberto para o professor de teologia, pois alegavam que, segundo uma das máximas que estava no texto por mim escrito, um mágico jamais afirma que é mágico, e que não tem pruridos em usar de mentiras e subterfúgios para negar sua condição. Isso naturalmente era absolutamente certo na época dos senhores por mim estudado, uma vez que se queimavam os feiticeiros. Se bem que, o que era derradeiro para eles, a evidência certeira dos meus poderes mágicos, era o fato de afirmar no texto que um verdadeiro mágico ou feiticeiro jamais cobra por seus serviços, e como já era notório, desde aquela época, o meu asco pelo dinheiro, deduziram que isso advinha porque com os meus poderes não precisava dele para obter as coisas, se é que não fazia as pessoas me darem com algum tipo de encantamento.
Verdade que quase todos meus textos foram incendiários, ou melhor, incendiados, mesmo porque nunca repercutiram por muitas pessoas. Ninguém lastima mais do que eu essas perdas, ainda que para a humanidade, é verdade, pouca diferença fez ou fará. E os lamentos que enunciava pela perda dos mesmos, que chegaram a dizer que eram exagerados, eram no máximo resultado de alguma dramaticidade da minha parte, afinal, também sou humano. O fato é que acreditava que não merecia tais castigos, sempre fui bem comportado, aluno estudioso, ainda que muitas vezes reprovado. Não fui, nem ambicionei ser o capeta como se alegava no mosteiro; tivesse ambições desse tipo de transcendência, seria deus.
Enfim, virei uma espécie de profeta e mago simultaneamente, adorado por alguns, odiado por muitos, mas temido por todos, pois acreditavam que pudesse usar meus “poderes” (sic!) para enviar a alma das pessoas para o inferno, assim como salvar dele. E o monsenhor ficava cada vez mais preocupado com a minha influência ou ascendência até mesmo sobre professores. Sua atitude para comigo não era apenas de ódio, mas de impotência, pois mesmo a maldade parecia não me atingir, ou pelo menos não surtia o efeito desejado.
Tentando me afastar de um contato maior com os demais seminaristas e professores, fui designado para as atividades campestres, cuidar de horta, de plantações, de criação de animais, enfim, uma vida agrícola: o mínimo de aula e o máximo de trabalho (só de escrever essa palavra sinto vontade de vomitar). Até então, nunca tinha saído do lado de fora do seminário e tinha visto o rio apenas na chegada ao mosteiro. Nada sabia da vida fascinante que ocorria a revelia do meu campo observacional. Descobri porque muitos preferiam o trabalho “duro” do campo, ao trabalho bem mais leve dos estudos. Ora, o que tinha perto? Alguns índios, mas principalmente índias, que por mais que insistissem, raramente estavam vestidas, e todos ficavam vendo (e babando) as tetas nuas balançando daqui para lá. Fiquei sabendo inclusive que chegaram a ocorrer estupros, mas como tudo que envolve a igreja, as coisas foram abafadas. Mesmo eu, quase sempre dotado de um autocontrole de fazer inveja a qualquer padre, tive que conter até meus olhos que tendiam a se direcionar para os seios e para tudo mais desnudo.
Todavia, os índios ajudavam nesses trabalhos agrícolas e recebiam uma porcentagem que levavam para suas aldeias espalhadas ao redor do seminário. E nós ficávamos sob a supervisão de um padre agrônomo, que nunca dispensou a companhia de uma das índias que até quis mudar para a sua casa, que ficava na parte administrativa da parte rural do seminário, distante dos altos muros do mosteiro propriamente dito. Ele nos fazia carpir, roçar, colher verdura, dar comida para porco, galinha, enfim, qualquer dessas coisas horrorosas além de outras mais.
Foi assim que descobri porque todos queriam se alistar para os serviços de carregador dos produtos do barco para o mosteiro, uma caminhada carregando carga por mais de 800 metros: o barco trazia 2 prostitutas, e os noviços faziam fila para utilizar seus serviços: 5,00 para punheta, 10,00 para o boquete, 15,00 para por dentro da perseguida e vintão para o cu. E como tudo nessa vida, havia discriminação, os padres raramente tinham que pagar pelos serviços; até para isso esses velhacos pedem isenção de taxas, ainda que não se cansem de passar a sacolinha nas missas ou em visitas ao pobre rebanho.
Enfim, a vida parecia bem agitada fora do seminário. Naturalmente, sempre dei um jeito de ficar sem trabalhar: comecei sendo ajudante do padre agrônomo, fazendo as anotações nos seus registros, logo me pôs para organizar a sua biblioteca, depois como monitor dos demais seminaristas, por fim, fiquei como fiscal de tudo, e até os índios tinham que prestar contas comigo, enquanto ele prestava total assistência à pobre índia. Meus conhecimentos agronômicos, florestais, geográficos e até mesmo geológicos e biológicos foram significativamente ampliados. Tive acesso aos diversos mapas hidrográficos, geológicos, geográficos de toda região. De repente, sem sair do seminário, conhecia melhor a região que muitos mateiros, com os quais sempre conversava e trocava opiniões sobre a floresta circundante e seus caprichos.
Foi assim que amadureceu a idéia de fugir. Estava para fazer 18 anos e com a maioridade meus pais não poderiam continuar a me obrigar a lá permanecer. Segundo as poucas cartas que recebi deles, pretendiam me manter aqui até os 21 anos, pelo menos. Ou seja, se dependesse deles seria um padre. E se meu plano tivesse êxito, apareceria na casa deles para dizer que não precisava mais da tutela deles depois da maioridade, e que viveria por conta e risco próprio. Já havia escrito pedindo a liberação dessa tutela e tinha recebido um rotundo não, certos que não tinha como fugir e seria obrigado a me submeter às circunstâncias geográficas de não poder escapar do seminário. Mas, decididamente, não nasci para ser domesticado ou para a obediência.

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