terça-feira, 15 de novembro de 2011

Notas sobre o meu existir N° 16

Levantei, como sempre, sem ânimo, visto que, se acordamos, invariavelmente, temos que fazer coisas, o que nunca foi do meu agrado. Chegando ao banheiro notei um ar estranho no ambiente. Todos olhavam, apontavam, falavam de mim. O quê ou porque, não suspeitava. Afinal, na minha consciência nada fizera de diferente, e mesmo que não usasse sabonete, era público e notório que fedia menos do que muitos que utilizam de todos os artifícios da futilidade humana para esconder sua fedentina própria. Fiz como sempre, as necessidades básicas.
Ao me direcionar para a saída, um dos meus seguidores entregou sorrateiramente um bilhete, que li no caminho do calvário da missa matutina. Dizia:
A visita da sua mãe gerou comentários, visto ser em dia e época imprópria das visitas de todos nós. Acreditam cada vez mais nos seus poderes mágicos para obtenção dessa regalia. E alguns heréticos espalham por aí histórias de que é uma criança mimada por ela, chamado de Magrela, provavelmente, tentando diminuir seu feito de obter essa regalia”.
Bom, agora sabia o motivo. Insuportável era ouvir os risinhos de alguns, o medo nos olhos de outros, e até o padre vigilante, que sempre me tratou com algum temor, dar alguns sorrisos e parar de ficar me vigiando ininterruptamente como era seu costume. No café da manhã, um dos maiores e mais fortes da turma dos veteranos, quase padre, que desde a minha entrada procurava motivos para me provocar e eu esquivava-me, como me esquivo de tudo que dá trabalho, atravessou o salão bradando:

- E aí Magrela, mamãe veio passar talquinho no nenê?

Calmamente levantei os olhos e vi aquele mastodonte se dirigindo até mim. O padre vigilante só olhando, sem interceder. Todos observavam atentos o que estava por ocorrer. Estacionado na minha frente, com os braços cruzados para enaltecer a musculatura, disse quase cuspindo:

 - Fiquei sabendo que você é um filhinho da mamãe, que chama você de Magrela, um apelido feminino como você. Você devia estar num convento!

Todos riram, ou quase. Eu não e acredito que mais alguns também me seguiram nessa atitude. Levantei, e como não sou pessoa de sair por aí gritando, disse singelamente:

 - Não sei o que sua orelha de asno ouviu de algumas cavalgaduras que lhe são próximas, mas certamente grunhidos de animais não conseguem descrever a riqueza da convivência humana.

Nisso os 4 que assistiram meu encontro com minha mãe, levantaram-se e vieram se juntar a ele, e todos na minha frente disseram unisonicamente:

 - Repete se é homem!

 - Senhores, todos sabem que minha força não é bruta, é de outro quilate.

Agarraram-me pela batina de tal modo que meus pés mal alcançavam o chão. Ainda sufocado, disse com voz firme.

 - Mesmo um paquiderme que coloca o tigre para correr, morre com a picada da serpente! Vocês podem me por para correr, mas não escaparão do veneno da verdade que foi lançada aos quatro cantos desse salão.

Nisso o padre vigilante intercedeu, pois era visível que estavam para iniciar uma carnificina comigo, o que, devido às minhas pequenas dimensões, não demoraria mais que alguns breves minutos para ser completamente destrinchado.

 - Vamos parar com isso. Lembrem-se da palavra do senhor, perdoai!

Ninguém perdoou ninguém. E cada um foi para as suas obrigações diárias, eles cuidar do jardim, eu da lavoura. E enquanto cuidavam do jardim, eis que uma serpente pica bem na jugular daquele que me afrontou, vindo a falecer poucos instantes depois.  O soro antiofídico aplicado de imediato foi de fato um desperdício. Ocorreu uma comoção local e os boatos começaram a correr soltos. Era um falatório generalizado, todos me interrogando, muitos fugindo de mim, outros se ajoelhando e pedindo perdão por coisas que nem sabia que tinham feito contra mim, e muitos, mais do que gostaria a maioria dos padres, agora quase me venerando como um profeta, e outros tantos me temendo como um demônio.
Monsenhor chamou a todos para o pátio e começou seu discurso:

 - Senhores! Nós somos seres racionais, a grande maioria adulta, não podem continuar a acreditar nesses boatos, provavelmente lançados por ele próprio, que esse pirralho (nitidamente apontando para mim, que já via as pessoas se afastando) tenha poderes sobrenaturais! Vou mostrar a todos como deus está do nosso lado, e mesmo que esse infeliz pudesse ter os poderes que falam, mesmo que associado ao demônio, ainda assim, nós o venceríamos, pois carregamos a cruz de cristo!

Saiu do púlpito e se dirigiu na minha direção, pegou-me pela orelha e começou a puxar com força exacerbada, nisso tropeça, cai e quebra o braço que até a pouco puxava o meu inocente instrumento de audição.
Todos olharam para mim, mas nem o padre vigilante quis falar ou tocar na minha pessoa. Confuso e sem saber o que fazer, perguntei:

 - Vou para o claustro, para o cadafalso ou volto para as minhas funções?

Silêncio profundo. Fui em direção do meu claustro, mas comecei a ser seguido não apenas pelos 7 discípulos iniciais, mas agora por 12 seminaristas. E enquanto a grande maioria estava atordoada tentando levar o monsenhor para o ambulatório para os primeiros socorros, antes de se aventurar horas de barco até a cidade mais próxima com hospital, nós fomos para uma parte sombreada. Tinham muito para perguntar, pena que as respostas que iria oferecer certamente não atenderiam as expectativas de todos, visto que a visita da minha mãe devia-se ao poder do meu pai de interceder junto às autoridades, e o restante a roda da fortuna nas suas inesperadas voltas realiza alguns caprichos ao acaso. E eu era apenas a pessoa errada no momento inoportuno, que por vezes falava demais devido à jovialidade da carne.
Enquanto olhava todos voltados para mim, esperando que me manifestasse sobre o ocorrido, vi ao fundo o barco saindo levando o corpo inerte do brutamonte, mais o monsenhor reclamando de dores se afastando rio acima, mais o piloto e outros dois, um padre e um veterano. Falei:

 - Olhem! Lá vai o barco com o monsenhor.  Com essa pressa, espero que não sofra algum acidente.

Maldita boca, o barco virou antes de fazer a curva do rio e sumir de nossas vistas, como todos que o ocupavam.

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