domingo, 31 de julho de 2011

Notas sobre o meu existir N° 14

Era um sábado, primeira aula, latim, dormia, quando fui repentinamente acordado pelo padre vigilante, mais  4 alunos grandões, da turma dos mais velhos. Quando vi a situação ruim, pensei: vai piorar! Foi quando o padre falou:
 - Dormindo! Levante-se e nos acompanhe......
 - Mas, só por que estou dormindo na aula??????
 - Não! Apenas nos siga.
Levantei, é claro, que alternativa tinha diante de 4 grandões e um padre louco por castigar? Saímos da sala e pensei: descobriram meu furto de velas, sabia que não devia ter apanhado 3 maços de uma só vez, porém precisava fazer um estoque para levar na minha pretensa fuga. Mas, para a minha surpresa, ao invés de nos dirigirmos em direção da sala do monsenhor, caminho que tinha que fazer quase toda semana (por motivos banais, por exemplo, ter usado o terço, no claustro, para pendurar o papel higiênico, visto não haver qualquer outra possibilidade de pendurá-lo), fomos em direção ao grande banheiro do seminário. Lá chegando, mais surpresas me aguardavam. 2 pessoas vestidas de aventais emborrachados, segurando a grossa mangueira de lavarmos o chão, alguns escovões, sabão e sei lá que mais instrumentos e substâncias de torturas foram utilizados. Só sei que arrancaram minha roupa, abriram aquela mangueira de água gelada, e esfregaram tudo, arrancando cada uma das minhas infindáveis sujeiras que cuidadosamente acumulava no decorrer dos meus dias pelo meu corpo. Lutei, relutei, gritei:
 - Todo homem tem o direito de viver com sua imundice com toda dignidade!
Mas, abriram a mangueira no máximo, calando-me por completo. Ao fim de uma eternidade, tais torturadores se deram por satisfeitos e me deixaram em paz, jogando uma tolha na minha cara.
Não agradeci.
Naturalmente, quando vi no banco uma batina limpa, uma botina nova, uma bíblia nova e um terço novo, pensei: acho que o próprio bispo é quem deve vir aqui, afinal, por que me limpariam e me arrumariam assim? Após vestir-me, o padre vigilante falou:
 -Siga-me!
Segui, eu mais os 4 trogloditas. Novamente, passamos pelo corredor que ia para a sala do monsenhor e não fomos para lá, surpreendendo-me, e fomos em direção do grande salão, onde normalmente os seminaristas recebem seus visitantes. Da porta vi um vulto feminino ao longe que parecia familiar, e de repente um grito fatídico:
 - MAGRELA!!!!!!!
Era minha mãe e tinha que me chamar pelo apelido que mais detestava. Suportava ser chamado de ratazana de biblioteca, de escudeiro do nada, de inútil, até mesmo de imbecil (o mais usual), mas Magrela, realmente, não tenho palavra suficientemente feia para dizer o que esse termo me causa. Escutei o riso contido dos 4 animais, o padre vigilante tossindo para disfarçar a gargalhada e a respiração ofegante misturada de choro da minha mãe correndo na minha direção, e eu indeciso se vomitava, chorava ou não fazia nada; minha prudência sempre opta por nada fazer. Fiquei estático. Minha mãe me abraçou, beijou, beijou, abraçou e abraçou e beijou e abraçou......... De repente, me empurrou para trás com os mesmos braços que me abraçavam e me olhou com olhos inquiridores. Perguntou:
 -Você está bem? Estão te tratando bem? Como você emagreceu..... E esse cabelo.... e desde quando você deixa a barba crescer, está parecendo cristo...... nossa que batina legal e bem arrumada, você sentiu muito a nossa falta? Olha, tudo que eu e seu pai fizemos é para o seu bem. Mas, afinal, você não fala nada? Como sempre, o velho caladão, eu te adoro Magrela......
E continuou falando, falando, falando..... Soube da vida de todos, nos mínimos detalhes, entre vários beijos e abraços de saudades sinceras. Quando todos se afastaram entediados com a metralhadora bucal de mamãe, foi que ousei interrompê-la, pois ela parecia querer aliviar sua consciência pesada de aqui estar contra a minha vontade.
 - Mãe?
 - Sim, meu filho.
 - Me tira daqui.
 - Não posso. Seu pai quer você longe dos livros errados. Eu também gostaria que você se afastasse deles, e principalmente, parasse de escrever. Você tem um dom especial de escrever coisas que encantam e irritam simultaneamente. E temo que seus escritos te levem para um triste fim, como os autores que mais gosta que, ou foram mortos por suas idéias, ou foram execrados, ou enlouqueceram.  Você deveria usar a sua inteligência e habilidade para algo mais útil. O monsenhor me contou que mesmo aqui você continuou encontrando livros errados e que o transferiu da biblioteca para a lavoura. Creio que isso será bom para a sua formação, você nunca se interessou por essas coisas do campo porque não conhecia. Quem sabe você não descobre uma nova vocação.....
 - Mãe, não quero uma vocação, nem ao menos quero uma profissão. Tudo que quero é ser deixado em paz, ficar conversando com as pessoas, estudando coisas que me interessam, lendo as bobagens que foram escritas e quando possível escrever outras tantas.
 - E vai viver do que? Todo mundo tem que ter uma profissão, seus irmãos já estão encaminhados, até os mais novos já sabem, e você?
 - Bom, acho que vou fazer algumas disciplinas num curso de antropologia, outras de história, algumas de filosofia, um pouco de matemática, depois......
 - E quem vai sustentar tudo isso? Seu pai? Você não conhece seu pai.........
 - Assistirei aulas nas universidades públicas. Não preciso de dinheiro para isso.
 - Mas precisa para tudo mais, comer, vestir, morar, curar suas doenças, enfim, você precisa pensar no futuro. Não acredito que seu pai deixe você sair daqui sem oferecer algo que lhe pareça que você se “curou” do que ele considera seu problema.
 - E qual é o meu problema?
 - Perder a vida lendo e estudando bobagens. Tanto ele como eu consideramos que isso faz de você uma pessoa triste, revoltada, levando a escrever coisas horríveis. Não que você não escreva bem, mas o que diz e a forma como diz, acaba por resultar numa abordagem em que o leitor sempre acabe incomodado de algum modo.
 - E a senhora já leu algum texto meu? Papai queimou os mesmos.......
 - Sempre li seus cadernos enquanto você estava na escola. Você escreve bem, tem pensamentos interessantes, é muito inteligente. Mas, você tem uma amargura que não pertence à sua idade. Você devia estar lendo e escrevendo poesias, ou romances, ou contos, quero dizer, só isso, pois sei que leu quase tudo que temos em casa, mas você fica lendo pessoas entristecida, como é comum acontecer com pessoas que detém muito conhecimento. Eu com 17 anos só pensava em namorar, só queria saber das coisas alegres da vida e detestava coisas sérias. Você não se diverte, não pensa em namorar, raramente o vi dar uma risada, está sempre entretido com assuntos sérios, não vejo alegria nos seus olhos, enfim, você parece uma pessoa entediada com a vida. Por vezes, tenho medo que se mate......
E começou a chorar. Tentei acalmá-la, disse que não era triste, que não sentia tédio nem pensava em suicídio. Disse que gostava da vida, porém de forma diferente dela. E ainda disse que ela não deveria se preocupar comigo ou com o meu futuro, pois era alguém que se satisfazia com pouco e com coisas diferentes da maior parte das pessoas, que tinha felicidade quando encontrava idéias inteligentes, que me divertia estudando a história da humanidade e imaginando as cagadas dos tempos passados, que adorava descobrir novas verdades e perceber minha ignorância.
Ela se acalmou. Olhou bem dentro dos meus olhos e perguntou:
 - Você promete uma coisa?
 - Não faço promessas.
 - Você para de escrever?
 - Não!
 - O monsenhor me disse o que ocorreu com você devido ao seu escrito, na primeira visita que não pode ser feita porque estava preso. Você está aqui por um texto seu. Tanto aqui como em casa, seus escritos acabaram queimados, e você não percebe que são sinais de deus para que pare com isso?
 - Mãe, a senhora não percebe que o problema não está no que escrevo, mas na reação das pessoas a eles? A senhora lia escondida minhas coisas e nunca quis me castigar.......
 - É verdade, mas sempre temia o que aconteceria se a maior parte das pessoas lessem o que escrevia. Foi por isso que sempre quis levar você a um psicólogo, mas você sabe da visão do seu pai sobre a psicologia..... Aquele texto que seu pai queimou sem ler “Deus, Uma Falsa Questão” foi horrível de ler, quando diz que para você é indiferente a existência ou a inexistência de deus, que o lixo te preocupa muito mais, sei lá parece que deus tem menos méritos que o lixo......
 - O lixo, pelo menos, tem o mérito da existência.....
- Magrela, não começa com suas ironias! Mas, afinal, você quer ser um escritor?
 - Já disse que não quero ter profissão. Só quero escrever.
 - Aí, meu deus, não sei o que fazer contigo.......
 - Deixe eu seguir meu caminho.
 - Uma mãe não pode ver seu filho caminhando para o abismo e não fazer nada.
 -  Abismo é onde me encontro agora.
Nos olhamos e ela me beijou forte e abraçou mais forte ainda.
 - Vou falar com seu pai. Realmente, isso aqui para você deve ser uma tortura diária, e acho que você tem mais maturidade que a maior parte das pessoas que conheço, e acho isso desde que você é pequeno. Sempre se relacionou mais com pessoas mais velhas do que com crianças da própria idade, ainda que pouco se relacione com as pessoas, aliás, para variar, pelo que fui informada, você parece não ter amigos, nem participar de nenhuma atividade coletiva aqui no seminário. Você sabe o que quer, ainda que para mim seja um verdadeiro mistério o que fará de sua vida. Mas, acho que você deve procurar seu caminho próprio; você, na verdade, sabe mais o que é certo do que eu ou seu pai.
 - Que ótimo, mãe. Que bom que a senhora concorda comigo.
 - Mas, não posso prometer nada, você sabe como é difícil fazer o general (como chamávamos meu pai quando ele não estava presente) mudar de estratégia. No que depender dele, você fica aqui até os 21 anos, quando se esgota os recursos possíveis para mantê-lo sob sua tutela. Não pense que ele não goste de você. Se você soubesse todos os recursos e uso de influência que ele utilizou e utiliza para que fique incomunicável com o mundo, enfim, o tempo que ele perdeu e perde para tê-lo sob controle é uma prova muito grande de amor, ainda que acredito que você não possa sentir assim. Ele só não veio porque está doente e realizando um tratamento demorado que exige sessões 2 vezes por semana de fisioterapia; está meio travado e não consegue andar direito, com muitas dores pelo corpo, não conseguiria andar de barco para aqui chegar.
 - Mas, mãe, daqui pouco tempo faço 18 anos e ele não poderá mais me obrigar a ficar aqui.
 - Não pense que ele não pensou nisso e ele tem alguma estratégia para essa eventualidade. Só não sei qual.
Foi só calar-me por alguns segundos que ela ligou a metralhadora bucal e me detonou com milhões de perguntas e nem ao menos parava para ouvir a resposta. Contei algumas ocorrências, alguns dos meus momentos horrorosos, algumas das minhas decisões sobre os estudos que estava realizando e querendo realizar. Foram mais alguns bons instantes agradáveis. Porém, todos sabem, o tempo é implacável, passa! E ela teve que ir embora e eu voltar para as duras tarefas campestres. Depois da presença da minha mãe, o melhor da visita foi ter perdido as aulas da manhã e a missa do almoço.
Depois de tenebrosos meses, finalmente, alguma esperança de vida.

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