segunda-feira, 11 de julho de 2011

Notas sobre uma filosofia intestina – um comerciante honesto, mas sem virtudes cívicas

Não há força civilizatória maior que o comércio, criando intercâmbios culturais e com ele a tolerância, para trocar não apenas mercadorias, mas também interesses, cultura, juntando necessidades distantes ou mesmo criando-as através de ofertas diversificadas. As trocas humanas no decorrer dos séculos nos uniram de alguma forma, apesar das guerras religiosas, territoriais ou expansionistas. Há uma comunidade internacional que vive de trocar coisas, que comunga de muitos princípios comuns, que circula por toda parte do planeta.
Até aqui estaria tudo perfeito, não fosse o comércio hoje ser fundamentalmente um problema financeiro, onde o produto adquirido é o resultado financeiro do produtor e do comerciante, ou mesmo do adquirente, caso financie o produto também. O mundo está financiado. E para um mundo que cresce sustentado em dívidas, só interessa o desenvolvimento econômico, pois conta com o crescimento para pagar as dívidas dos empréstimos, nem que para tanto tenha que alterar dinâmicas sociais e políticas para que possa se expandir indefinidamente, obrigando a todos viverem em função dessa variável da vida, que a rigor não é a mais importante.
O desenvolvimento econômico tem provocado um rebaixamento moral da sociedade, desde que assumiu o papel de variável maior a projetar o destino comum. Tudo perdeu o valor e a dignidade e adquiriu um preço e alguma utilidade temporária. O tipo ideal de homem é aquele que está mais preocupado com o seu bem estar, com a troca de um eletrodoméstico, do que aquele que defende a abnegação republicana ou desenvolva sentimentos humanitários. O enriquecimento monetário não deixa de ser um empobrecimento das virtudes cívicas, porque cada vez mais se pensa em pagar para não participar da vida pública e comum; se aposta num Estado provedor, ainda que endividado. Antes de cidadão, todos se entendem e se satisfazem em serem contribuintes. É de se notar, que o crescimento da futilidade promove o desenvolvimento econômico, pois quanto mais fúteis são as pessoas, mais consomem coisas desnecessárias, mais se endividam para ter.
Como diria o bom Rousseau, o amor por si foi liquidado pelo amor próprio criado pelo desenvolvimento econômico e social. E é esse amor próprio que busca mais brilhar do que ter valor, mais vencer do que conviver, mais ostentar do que ser, e promove o desenvolvimento econômico com as pessoas buscando os enfeites para disfarçar suas supostas imperfeições, ou parecer importante pelas coisas que possui. Assim se perde a compaixão pelo próximo, o interesse pelas coisas comuns, e se prende num universo privado, buscando a satisfação nos bens que conquista ou se lamentando pelas dívidas contraídas. A ciência, as especializações, as aparentemente grandiosas conquistas da humanidade, mais do que nos libertar do trabalho ou mesmo da ignorância, promovem mais locais onde se gasta mais horas de trabalho, ou promovem novos mitos e superstições.
E tudo nesse mundo vira um negócio: a doença, a desgraça, a dor, o roubo, a morte, tudo tem o seu preço. Mesmo o bandido tem o seu valor. O que seria da polícia se eles não existissem? Não tem juiz que não agradeça o fato de haver pessoas desonestas, obrigando a todos honestos ficarem brigando pela verdade e justiça nos tribunais. A indústria da vigilância agradece todo dia o fato de haver ladrões e desonestos no mundo. A desgraça de uns, são os lucros dos outros, que o diga a funerária e o coveiro. Nesse mundo não se pode ser todos felizes, pois a felicidade de alguns depende da desgraça de outros, tudo gera renda, até mesmo a infelicidade, assim, ainda que haja descontentes, nunca estão todos descontentes. E a rigor não há imoralidade alguma nas pessoas abrirem seus negócios e lucrarem com a desgraça humana, pois alguém tem que fazer o trabalho sujo de limpar a sujeira. Mesmo os vícios podem gerar renda e impostos para benefícios públicos. A moralidade, aliás, nesse mundo, é uma questão não apenas secundária, mas amplamente dispensável diante de qualquer oportunidade de negócio. E se não reina a imoralidade, a amoralidade impera na prática diária, e a deliberação individual depende de um critério de utilidade determinado por uma consciência de um egoísta supostamente esclarecido sobre o que é lícito ou não fazer.
De fato, poucas coisas restaram com valor. O próprio termo “valor” está esgarçado, e no geral se confunde com o preço. Parece que tudo que é tangível, é pagável. A dignidade, a coragem, a virtude perderam o significado, e no seu local surgiram a fama (temporária), o pragmatismo (hedonista), a realização (egoísta). A lealdade foi trocada pelas constantes trocas de desejos e produtos, de causas, de princípios, ou até mesmo de pessoas. Vence-se e atinge os holofotes das celebridades pelo esporte, pela arte, pela política, pela fortuna, pela beleza, tudo financiado e comercializado, nunca pela participação cívica ou pela posição política ou humanitária. A participação cívica é vista como coisa para santos abnegados, que tem algum valor, mas não vale tanto como um jogador de futebol ou um cantor. A coragem de sair nas ruas e bradar por causas justas é importante, também tem algum valor, mas só para aqueles que têm tempo, afinal, pensa a maioria, já é um contribuinte que colabora para o bem comum e prefere usar o tempo para passear na praia, visto que o valor pelo civismo não passa de uma passageira admiração. E assim ninguém, ao fim, quer participar da vida pública, deixar sua privacidade ou vida doméstica e ir à praça defender seus interesses ou lutar para que interesses nefastos não prevaleçam no interesse público. A maioria está preocupada em como adquirir bens, como pagar menos impostos, como pagar as dívidas, como ascender na vida social.
O rumo do mundo e da vida em comum são questões para os telejornais e suas reportagens, ou para os livros de ficção. Desde que esteja ocorrendo algum desenvolvimento econômico e as crises econômicas continuando como apenas alguma turbulência momentânea na empregabilidade das pessoas, poucas coisas preocupam o cidadão comum. A preocupação de todos é obter algum desenvolvimento econômico para satisfazer caprichos e futilidades. Não falta tanto o necessário para as pessoas, mas o supérfluo, algo que não apenas satisfaça uma necessidade artificial, mas que realize também algum tipo de distinção perante alguma comunidade: a felicidade e a satisfação não bastam, é preciso que invejem a felicidade e a satisfação obtidas. E ainda que se fale muito do nosso interior, o que distingue as pessoas aos olhos comuns são as coisas, objetos valiosos que possui ou cargos e posição social que ostenta.
Desse modo, com a vida governada pelas oscilações econômicas, gerando oscilações sociais e políticas, e a amoralidade generalizando-se pela ação comum, todos procuram tirar vantagem mesmo da desvantagem, visando o lucro ou a compra de algum bem, principalmente os supérfluos, tendo o dia a dia regido pelos ganhos ou custos financeiros. Cada pequena coisa comprada vem embalada e gera lixo, acrescenta necessidade na vida e, na maior parte das vezes, ao fim, se descarta, nem sempre de forma apropriada. O enriquecimento econômico da sociedade tem gerado milhões de consumidores contumazes, muitos endividados, ao invés de permitir menos horas de trabalho, com pessoas dedicadas ao auto-cultivo e ao cultivo das causas públicas, ou mais recursos e dedicação para as questões humanitárias.
E se é forte afirmar que o desenvolvimento econômico se dá por uma imoralidade social, o fato é que impera alguma amoralidade na forma de se perceber um mundo repleto de valores, que passam despercebidos na busca cega dos interesses próprios. Do ponto de vista cívico, contentam-se em não serem ilícitos e de serem contribuintes, por vezes, eleitores. Do ponto de vista humano, contentam-se em não maltratar o próximo e por vezes fazer caridade. No mais, sonham com coisas que ainda não têm. E quando avistam o mundo, vê o preço das coisas, os custos das viagens, as roupas que precisam, as dificuldades de ascenderem ou de manterem o status. O mundo é algo que se cobiça e se reclama, e as pessoas ou são úteis ou atrapalham, e contam-se os centavos para comprar mais alguma coisa. As pessoas caídas nas sarjetas, as desesperadas pelos cantos, as aparentemente inúteis que trafegam pelas ruas, tudo é algo que se paga ao Estado para limpar das vistas e da consciência.
Os homens hoje são comerciantes honestos e cumpridores razoáveis da lei, mas nem se dispõem a melhorar a lei, ou a si mesmos para serem mais sensíveis as dores humanas, nem pensam que podem modificar o mundo. Lutam pelos seus interesses dentro das regras do jogo, mas nem pensam em mudar as regras ou mesmo acabar com o jogo, pois que não somos obrigados a viver de acordo com a economia e a sua “lógica” e a sua “ética”. O problema do desenvolvimento econômico não deveria ser o fator determinante da conduta pública, nem a aquisição de bens o objetivo principal de vida, mas antes a satisfação das necessidades primárias de sobrevivência, e o resto do tempo dedicado para a contemplação e devida apreciação da convivência humana e sua potencialidade mútua. Defendo que se deixe a condição única de comerciante para a qual a sociedade forma as pessoas, dando-lhes profissões para comercializar seu ofício, e que se centre na formação de um cidadão do mundo, que dê tanto valor às trocas espirituais como se dá às trocas materiais, e que saiba apreciar a pluralidade humana.

2 comentários:

  1. Muito interessante.
    Consumimos tudo que o poder econômico nos faz crer ser necessário consumir.
    Vivemos nesse consumismo maluco e erroneamente achamos que é bom.

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  2. Não perceber os erros está entre os piores erros.....

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