segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011

Notas sobre o meu existir N° 2

Não tive uma infância normal. Creio que minha primeira crise existencial ocorreu por volta dos 6 anos, quando descobri que não existia papai noel. Perdi a confiança nos adultos, e como aprendi a ler cedo, comecei a ler nos livros tudo que falavam: fui percebendo mais mentiras adultas. Os adultos falando da cegonha e eu lendo uma enciclopédia da escola chamada Medicina e Saúde, cujo 3º volume era sobre procriação, explicando minuciosamente a sexualidade do evento. Quando aos 8 anos vieram com aquela história de 1ª comunhão, pensei: lá vem mais mentiras dos adultos, que gostam de ludibriar as crianças. Já tinha lido sobre deus e nada me agradara. Achava a bíblia um texto de terror de um deus vingativo e cruel, além de muito chato: para mim podiam ter falado o que falaram com um terço de palavras a menos. E o novo testamento, então, muito melodramático, mal escrito, e depois quando vim a estudar história com mais profundidade, descobri que era bastante tendencioso sobre os acontecimentos da época. Enfim, nunca desenvolvi algo que todos aprendem desde pequeno, ter fé. Sentimento completamente desconhecido para mim. Desenvolvi foi a desconfiança!
É claro, que cumpri o rito da 1ª comunhão, e confesso envergonhado que foi a primeira e a última vez que comi a porcaria da hóstia. Se não fizesse, iria para um colégio interno, como castigo por me recusar a querer ser católico. Não tinha argumentos na época para afirmar que jamais seria católico ou de qualquer outra crença. Não que fosse um cético, só achava que se existisse alguma verdade, ela não estava na religião. Mas, acreditava que existia verdade, e era uma questão de tempo para encontrá-la, que estava nos livros que revelavam, cada um deles, uma parte da vida e do mundo, até mesmo os livros religiosos que li bastante.
Mas, meus pais sempre ficaram preocupados comigo, que ficava lendo dicionários, enciclopédias, os clássicos da literatura, e o pior para eles, não aparentava nenhum gosto por esportes, pela televisão, pelos eventos sociais, e ia à missa visivelmente contrariado. Não obstante, sempre fingia ser um cavalheiro, e cedia o lugar para alguma senhora idosa, ou mãe com criança, e fingia que ia ficar em pé ao fundo, mas saia e sentava na escadaria e abria um livro qualquer: tinha uma capa de bíblia com as folhas arrancadas e dentro colocava de tudo para ler. Meus pais pensando que estava lendo a bíblia (o que os deixava contente) e eu lendo coisas que eles nem imaginavam que pegava na biblioteca pública.
Meus pais tinham alguns livros, pois minha mãe era professora de profissão, ainda que nunca a tenha exercido, mas nos ensinava desde cedo, aos 5 anos,  a ler e a escrever; meu pai, como militar de carreira, tinha livros sobre guerras, de história, e alguns de filosofia, todos radicais de direita, como Platão, Comte, Schopenhauer, Nietzsche, Stuart Mill, Hobbes, Sun Tsu e outros que já não me lembro, ainda que tenha lido todos. Minha mãe tinha literatura como hobby, e assim nunca faltavam livros para serem lidos. Afora coleções, livros sobre a natureza, de geografia, enfim, o meu único amigo de infância que tive e visitava a casa, se espantava com a quantidade de livros, o que naquela época era raro ter nas casas. Mas desistiu da amizade quando descobriu que não conseguiria me vencer no xadrez.
Ainda que não fosse um bom aluno, nunca reprovava. Mas, os professores reclamavam que não prestava atenção nas aulas, que ficava lendo escondido, que no recreio passava o tempo na biblioteca da escola, e que não tinha amigos, nem participava de nenhuma atividade coletiva, que faltava na aula de educação física. Que eu só respondia as perguntas que me faziam, mas não conversava, nem perguntava nada.
O que era confuso aos meus pais, é que enquanto todos brigavam para sair, ir a festas, shows, boates, jogo de futebol, viajar, e ficavam várias vezes de castigo, eu brigava para não sair, e como o castigo do meu pai era não sair, acabava sendo castigado e recompensado simultaneamente. Naturalmente, que ele me obrigava a ir aos eventos familiares e sociais, mas nada impedia de, de repente, sumir e ir para um canto e ficar lendo. E como não era de falar muito, nem muito participativo, logo esqueciam de mim, e só iam lembrar na hora de ir embora.
Enfim, enquanto meus 4 irmãos pareciam ter um rumo na vida, um seria engenheiro, outro seria médico, outro advogado e outro militar, e todos tinham várias namoradas, meu pai cobrava uma escolha profissional, para saber em que tipo de escola me colocar. E ainda cobrava o dever de arrumar uma namorada, para que não ficassem falando da minha masculinidade. Ele só não achava que era um homossexual, porque também não tinha amigos. Seu sonho era que eu seguisse a carreira militar, mas se esvaneceu quando leu no jornalzinho na escola um artigo meu sobre o pacifismo, onde, no ímpeto da juventude e para dar mais ênfase retórica ao texto, ofendia os militares.
Foi quando ele resolveu me internar num seminário para ser padre: achava que eu estava me tornando comunista, ou pior ainda, uma bicha (a palavra homossexual nunca foi pronunciada por ele em vida; achava uma palavra inventada por veados).  Na simplicidade de sua formação cristã, de caserna e machista, ele achava que os comunistas é que estavam enveadando o mundo, e tudo não passava de um diabólico plano secreto para acabar com o capitalismo e a civilização cristã, deixando os homens uns bundões, até com medo de lagartixa. Para ele os homens iam acabar gostando mais de planta, de bicho e de paisagem, do que de gente, e, é claro, para ele, quem gosta de planta ou é mulher ou é bicha.

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